Caroline Prestes, de 18 anos, é a primeira aluna autista a ingressar no ensino médio do IFRS Campus Bento Gonçalves. Das duas vagas PcD para o curso Técnico em Administração, uma foi preenchida pela estudante, em processo seletivo

Em 2007, foi criado pela Organização das Nações Unidas (ONU) o Dia Mundial da Conscientização do Autismo, comemorado hoje, 2 de abril. Segundo o Ministério da saúde, a data tem como objetivo difundir informações sobre o Transtorno do Espectro Autista (TEA) e, assim, diminuir a discriminação e o preconceito que cercam as pessoas afetadas pelo transtorno.

Ainda de acordo com informações do governo federal, os sintomas aparecem na infância e a tendência é que persistam na adolescência e idade adulta. O TEA costuma se manifestar nos primeiros cinco anos de vida e as pessoas afetadas, frequentemente têm condições comórbidas, como epilepsia, depressão, ansiedade e transtorno de déficit de atenção e hiperatividade.

Apesar das dificuldades, o Ministério da Saúde garante que algumas pessoas diagnosticadas podem viver de forma independente. Algumas intervenções psicossociais podem auxiliar nesse processo, como terapia comportamental e programas de treinamento para pais. O tratamento se baseia em uma equipe multidisciplinar, e envolve a intervenção de médicos, psicólogos, fonoaudiólogos, pedagogos, fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais e educadores físicos.

Uma história de superação

A adolescente Caroline Prestes, 18 anos, é um exemplo de superação e força. Isto porque ela é a primeira portadora de TEA admitida em um processo seletivo legítimo no Instituto Federal do Rio Grande do Sul (IFRS). A vitória, porém, teve um longo processo e o envolvimento dos familiares, além de profissionais dedicados.

Segundo a mãe e educadora social, Tatiana do Carmo e Silva, na primeira vez que a família ouviu a palavra ‘autismo’, Carol tinha quatro anos. Após a escola que ela frequentava recomendar a busca por auxílio médico, os pais procuraram uma pediatra que acabara de vir de um congresso na Alemanha. Depois de alguns testes, a médica recomendou a busca por outro especialista. “Ficamos nove anos na mão de uma neurologista inconsistente, hoje sabemos que lhe faltava conhecimento. Inconformados, buscamos uma psiquiatra especialista, que finalmente diagnosticou o TEA, o que todos já percebiam”, conta.

Os pais, Fabrício e Tatiana e a irmã Manuela dão suporte para o desenvolvimento contínuo de Caroline

Apesar de realizar o diagnóstico, a profissional não proporcionou o suporte necessário. A educadora explica que o tratamento do autismo não depende apenas de terapia medicamentosa, pois os remédios são apenas coadjuvantes. “A médica pediu que nós é que déssemos notícias a ela sobre a evolução da Carol, pois na opinião dela não tinha o que fazer. A doutora, na época, 2017, diagnosticou apenas o espectro e não teve protocolo para ir mais fundo e saber de onde vinha o autismo. Foi uma romaria, mas o diagnóstico completo e oficial veio apenas em 2020”, lembra.

De acordo com Tatiana, após um longo processo, as perguntas finalmente encontravam suas respostas. Ela explica que não se tratava apenas de autismo grave, na época com grau de suporte três, mas de outras comorbidades associadas à condição. “Certa vez lemos no livro do escritor Hebraico João uma mensagem que diz: ‘a verdade liberta’ e assim que nos sentimos quando saiu o laudo definitivo, três meses depois de longos 12 anos de muito sofrimento. Apenas quem vive isso sabe o que significa e este relato tem esse cunho, não espere, pois a verdadeira inclusão precisa começar em casa”, salienta.

Depois disso, foi ampliada a rede de estimulações e, em menos de dois anos, houve resultados do empenho. “Desta vez com terapia ocupacional, para sanar os problemas motores e sensoriais, terapia neuropsicopedagógica, com intervenção ABA para trazer maior autonomia, melhor performance acadêmica, terapia fonoaudiológica para auxiliar na leitura e escrita e, por fim, a garra da equipe nos treinos físicos, tão fundamentais e que são totalmente adaptados à condição neuropsicológica e motora. O nível de suporte baixou do 3 para 2, o que, no autismo, é excelente e quer dizer que ela está construindo conhecimento e maior autonomia”, relata.

Inclusão é primordial para o desenvolvimento

Desde o início da vida de Carol, os atos de inclusão foram essenciais. A começar da educação infantil, nos primeiros sinais de atraso quando comparado às outras crianças, a escola não impôs obstáculos para a permanência dela junto aos colegas. Depois disso, durante os 12 anos que estudou no colégio Marista, uma das professoras dispensou a ajuda de monitor e disse que daria conta dela. “Na época colocamos a equipe de suporte para ajudar os educadores a realizar uma adaptação curricular adequada em meio a tantas das suas necessidades específicas, pois sabíamos que a troca de conhecimento era fundamental para todos num tempo em que pouco se falava sobre autismo e quase nada se sabia. Tudo era tão incerto, mas o que nos mantinha ativos eram aqueles ‘microavanços’ observados não apenas nas questões cognitivas, mas também adaptativas, oportunizadas pela união de esforços. Mantivemos a ideia de mantê-la na escola junto com outros alunos chamados ‘neurotípicos’. Tínhamos a sensação de que ali era seu lugar”, conta Tatiana.

A educadora social revela que o foco sempre esteve na filha, em oportunizar um suporte familiar, terapêutico e educacional digno. “Tudo isto que estamos contando seria impossível se não tivéssemos a ajuda de pessoas que consideramos seres humanos incríveis, e foram tantas. Eu diria que foram ‘mestres’ que, ao longo desse período, se dedicaram e se esforçaram para acolher, compreender, mimar, paparicar, animar, estimular, abraçar, ouvir, corrigir, acalentar, incentivar, amar e acreditar. Hoje sabemos que não era apenas sensação, ali era seu lugar, sabemos os benefícios trazidos pela inclusão e nossa filha é prova disso”, destaca.

Caroline, conforme explica a mãe, foi não verbal até os quatro anos, e ainda hoje a comunicação está em construção. Já a respeito da alfabetização, Tatiana afirma que autistas aprenderem a ler e a escrever ainda é um tabu no Brasil. “Parece que eles não precisam, já que quem tem a responsabilidade não sabe ou infelizmente demostra não querer fazer… Falta tudo nas escolas por aqui, material, metodologia específica, sala de recursos, professor de Atendimento Educacional Especializado (AEE), Plano Educacional Individualizado (PEI), tecnologia assistiva, etc”, ressalta.

Tatiana sustenta que também falta capacitação para os professores, pois apesar de terem vontade, não sabem como fazer, pois os autistas não aprendem como os alunos neurotípicos. “Há muito trabalho para ser feito e, o melhor, sabemos que é possível. Que o diga a Carol, que depois que descobrimos os materiais e, principalmente, a metodologia, é só avanço. Mas isso ainda não está acessível nas escolas públicas e nem nas particulares, buscamos essas ferramentas por fora. Acreditamos que eles podem e devem se alfabetizar para construir a autonomia na vida adulta”, evidencia.

Com a chegada da pandemia, a casa da família Prestes se tornou clínica, escola e os pais, co-terapeutas e educadores de AEE. “Tudo isso na busca incansável pela reabilitação, e o que nos fortalecia era a certeza de fazer o melhor para ela e para outros que possivelmente virão depois de nós”, menciona. Em 2021, outro desafio: onde seria realizado o ensino médio da filha autista com nível de suporte 2. “Cabe aqui lembrar que neste período, devido à sua condição neurológica, ela ainda continuava em processo de alfabetização, por conta de uma das suas comorbidades, quando necessita estar inserida a um processo de inclusão pleno”, conta.

Em contato com o Núcleo de Atendimento às Pessoas com Necessidades Educacionais Específicas (NAPNE) do IFRS, Tatiana diz que enquanto mãe, sentiu que tudo, naquele espaço, parecia fazer sentido. “Até que a assessora de ações afirmativas nos informa com toda a sinceridade que se a Carol viesse a passar pelo processo seletivo, seria a primeira aluna com TEA do Campus Bento, mas que fariam tudo que fosse possível para formá-la, mesmo que isto demore mais tempo que o normal”, relembra.

Pensando na possibilidade, os pais conversaram com Carol a respeito do assunto e ela reconheceu que é preciso mudar. Sendo assim, tomou uma decisão apoiada. “Colocamos em prática a adaptação elaborando um diagrama, com figuras e palavras-chave para que ela mesma pudesse escolher o curso que mais se identificava, planejamos tudo e foi um sucesso. Reconhecemos aqueles que eram mais atrativos ao seu perfil e, para nossa grata surpresa, ela se posicionou, escolhendo o curso Técnico em Administração. Ela realizou a inscrição com apoio e participou do processo seletivo, sendo contemplada com uma das duas vagas destinadas a Pessoa com Deficiência (PcD) em seu curso. Acompanhamos a seletiva de perto e, quando saiu o resultado, ficamos todos felizes pela conquista legítima”, declara.

Questionada como se sente com a mudança de escola e novo curso, a estudante do 1º ano do ensino médio do IFRS Campus Bento Gonçalves, primeira com TEA a passar no processo seletivo, Carol se mostra satisfeita diante da escolha que fez junto aos pais. “Feliz, eu estou me sentindo bem”, comemora.

O pai e servidor público, Fabrício Daniel Prestes, e a mãe, dão conselhos aos pais de filhos autistas, que estão passando pela mesma situação que eles já enfrentaram. “Primeiro, não tenham medo. Segundo, pais que ainda estão casados, fiquem juntos, nada de se divorciar por causa do problema do filho, dois sempre é melhor que um. Terceiro, nada de ficar parado, ajam, não aceitem diagnósticos inconsistentes. Quarto, escolham a dedo os profissionais e escola e cobre por resultados, isso é imprescindível. Acredite, seu filho é capaz, mesmo que o mundo ainda não perceba”, finalizam.

Fotos: Arquivo pessoal