Estiagem, que atingiu todo solo gaúcho durante longo período, fez com que os agricultores tivessem perdas significativas no volume das uvas. Por outro lado, a qualidade do produto foi superior ao ano passado
O interior de Bento Gonçalves já não tem mais os tons roxos e verdes das uvas que colorem as parreiras e garantem o sustento de muitas famílias da região. Esse mês, mais uma safra foi finalizada. Para os agricultores, a produção não foi fácil, já que a estiagem assolou o Rio Grande do Sul por um longo período. Entretanto, para saber qual a avaliação final sobre a safra 2021/2022, a reportagem do Jornal Semanário conversou com pessoas do setor.
Vinícius Manfredini começou a trabalhar com a produção de uva aos 16 anos. Hoje, aos 26, segue no mesmo ramo. A propriedade onde produz a fruta está localizada no Vale dos Vinhedos e é totalmente destinada para a produção de vinhos finos e sucos em vinícolas da Serra.
Esse ano, a família colheu as últimas uvas no dia 3 de março. Ao todo, a safra rendeu cerca de 120 toneladas. Embora o número pareça alto, representa 40% menos do que foi colhido no ano anterior. A redução significativa é atribuída a seca. “Desde novembro / dezembro (de 2021) deveríamos ter chuvas mais acima da média para ter o preenchimento dos cachos, mas isso não aconteceu e eles ficaram menos preenchidos”, explica.
Como a propriedade não conta com sistema de irrigação, que poderia ter amenizado os impactos causados pelo tempo, diversas plantas morreram e algumas ficaram com os cachos murchos. De acordo com Manfredini, as uvas mais precoces foram as que mais sofreram com os efeitos climáticos.
Entretanto, se por um lado a estiagem reduziu a quantidade, por outro, melhorou o resultado final do produto. “Houve aumento na qualidade, em relação ao ano passado, por causa da seca no período da colheita. Teve graduações bem acima da média, em torno de 17 a 22 graus (teor de açúcar na uva)”, comemora.
Das parreiras para as mãos dos clientes
Quem passa pelo Vale dos Vinhedos, facilmente identifica uma placa com os dizeres “vende-se uva”. A tenda Carraro e Donadel nasceu há dez anos, com uma proposta diferente da maioria. A produção não é destinada para vinícolas. A fruta é colhida diretamente pelas próprias mãos de quem deseja comprá-la.
O agricultor, Dalto Carraro, 72 anos, conta que o trabalho nasceu em parceria com um tio, que comprou a área e teve a ideia de plantar as parreiras. Em quase um hectare de terra são produzidas apenas uvas de mesa, do tipo Rainha Itália, Benitaka e Clara.
Por lá, o trabalho ainda não foi finalizado. Ainda há muita fruta em cima das parreiras, para alegrar os turistas ou moradores que desejam comprar diretamente do produtor. “Não chegamos à colher nem metade. Tem muita uva ainda. Cálculo que nas parreiras tem uns seis mil quilos”, estima.
Diferente da maioria dos agricultores, que nesse período já finalizaram a safra, Carraro garante que para ele é normal encerrar esse processo mais tardiamente. “Sempre terminei a minha uva no final de abril, começo de maio. Acho que esse ano vai durar um pouco mais. Geralmente é assim a minha safra”, afirma.
Embora ainda não tenha sido encerrada, Carraro já consegue estimar quanto foi produzido: em torno de 12 a 13 mil quilos de uva. O número representa quase o dobro do que foi colhido na safra anterior, que rendeu 7 mil quilos.
Considerando a estiagem – a mais longa que Carraro já vivenciou desde que começou a trabalhar com parreiras -, o resultado alegrou o produtor. “Estou contente. Pela seca que enfrentamos, minha uva está bonita”, elogia.
Entretanto, ele percebe que a fruta demorou mais tempo para amadurecer. “Acho que foi pela falta de chuva. Fiquei preocupado com a seca. Estávamos com a ideia de fazer um poço artesiano, porque a gente pega água de um açude da casa do meu pai, mas ele baixou muito, tivemos que parar de dar água para as parreiras, era só uma vez por semana, até que começou a chover. Agora está bom”, explica.
Além do tempo de amadurecimento ter sido mais longo, o agricultor notou outras diferenças na produção atual. “Ano passado a minha uva era mais amarela e mais doce, principalmente a Rainha Itália. Esse ano, ela está um pouquinho mais verde e menos doce”, comenta.
Vinícolas elogiam resultado final
A Vinícola Cainelli tem seis hectares de vinhedos próprios, na empresa. Além disso, os proprietários compram uvas de terceiros e comercializam, para serem mais versáteis no mercado, de acordo com as variedades que necessitam.
O gerente executivo da Vinícola, Roberto Cainelli Junior, conta que nessa safra foram vinificados cerca de 65 mil kg, “mas produzimos além disso e comercializamos”, pontua. A produção da família foi aproximadamente 30% menor que a do ano anterior. “A estiagem no momento pré-maturação acabou causando uma má formação de cacho e perda de produtividade”, explica Cainelli.
Ainda que a quantidade tenha sido menor, a qualidade rendeu elogios e é comemorada. “Está incrível. Tivemos boa maturação de açúcares, ou seja, com excelente potencial alcoólico para nossos vinhos tinto e ao mesmo tempo, excelente maturação fenólica também, ou seja, coloração, aroma, antocianas e taninos de qualidade, para favorecer vinhos aromáticos e de ótima estrutura”, destaca.
Questionado sobre os produtos que o consumidor final vai encontrar, com as uvas dessa safra, Cainelli esclarece. “Espumantes de muita qualidade, como já é de praxe na Serra Gaúcha, mas também ótimos vinhos brancos e tintos. Para quem busca vinhos potentes, também um prato cheio, muita estrutura para originar vinhos de guarda e de alta intensidade”, salienta.
Na Vinícola Aurora, a safra iniciou em janeiro, em meio à estiagem. O presidente Rene Tonello, explica que devido ao tempo, o produto perdeu um pouco de peso, mas saiu ganhando em qualidade. “Conforme a safra foi andando, vieram algumas chuvas, então a uva acabou recuperando um pouco do peso, mas a qualidade vem se mantendo desde o início até agora”, garante.
De acordo com Tonello, a Aurora já recebeu aproximadamente 65,5 milhões, mas a previsão é de chegar nos 67 milhões, quando a safra for encerrada. O presidente avalia que foi mais um ano em que tudo transcorreu normalmente dentro da empresa. “A gente até agradece a população pela compreensão do movimento que tivemos ali (na filial da cidade), com os caminhões. Não se teve nenhuma notícia de transtorno maior que tenha causado algum problema no trânsito E, a análise que posso fazer é que foi uma das melhores safras em questão de qualidade que a Aurora recebeu”, finaliza.
Na Cooperativa Vinícola Garibaldi a vindima chegou ao fim no dia 18 de março, quando os associados entregaram as últimas cargas de uva, após 68 dias de trabalho intenso. Ao final da colheita, a Vinícola contabilizou a entrada de 26,2 milhões de quilos da fruta. O volume representa redução de quase 15% em relação à safra anterior. Ainda assim, a colheita deste ano se manteve acima da média regular dos últimos cinco anos, que na cooperativa ficou na casa dos 22 milhões de quilos. Ao todo, 65% da safra será destinada para a produção de suco de uva, vinhos de mesa e filtrado doce.
O presidente da Vinícola Garibaldi, Oscar Ló, avalia que ótimos produtos serão elaborados a partir dessa safra, consolidando ainda mais os produtos para o público brasileiro. “Sem dúvida vai ser mais uma safra em que o setor vitivinícola elaborará produtos de excelente qualidade e para cada vez mais consolidarmos o vinho nacional para o consumidor brasileiro. Cada vez mais, acredito que o setor está se consolidando em produzir qualidade para o consumidor”, afirma.
Sindicato dos Trabalhadores Rurais
O presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Bento Gonçalves, Cedenir Postal, avalia que a estiagem causou grandes impactos aos agricultores, principalmente no início da safra. “Muitos produtores perderam bastante, a uva murchou no pé, não conseguiu completar o ciclo”, afirma.
Depois, com a vinda de algumas chuvas, a fruta conseguiu se recuperar, finalizando com um produto de excelente qualidade. “Com sanidade muito grande de frutos, graduação muito boa. Certamente vão se tornar produtos de muita qualidade, seja vinho, espumante ou suco de uva”, aposta.
Nunca tem fim: os primeiros passos para uma próxima safra já iniciaram
Postal afirma que a agricultura é muito dinâmica e nunca para, senão, não há colheita no futuro. Depois de encerrada uma safra, já é o momento exato de iniciar a preparação da próxima. “Tem que organizar a propriedade. Alguns produtores fazem renovação de parreirais, também tem a estrutura dos postes, a revisão dos arames, enfim, uma série de coisas. A expectativa do agricultor é sempre de que a próxima safra seja boa, onde consiga ter rentabilidade na atividade”, pontua.
O agricultor Manfredini é um exemplo de quem já está em fase de preparação para uma nova safra. “Já iniciamos os trabalhos na colônia, preparando as parreiras para o novo início do ciclo: desponta de galhos, troca de postes quebrados, arrumando alguns ferros, fazendo limpeza das ervas daninhas. Dificilmente a colônia para. Sempre há algo para fazer”, finaliza.