Olhando pelo retrovisor, tenho a impressão de que vários anos se arrastaram desde o início das trevas, em 2020. Dias cheios de pânico superdimensionado pelas mídias que se transformaram em vetores do medo…
O terror nos perseguia onde quer que a gente fosse. Era como se perdigotos imaginários espalhassem o vírus no ar, no solo, na luz, com seu exército de réplicas pronto para o ataque. Até máquinas de limpeza andaram borrifando espaços públicos e ruas desertas, numa operação Caça-Covid.
As pessoas se trancaram a chave. Eu assumi uma rotina onde o “fique em casa” incluía algumas fugidinhas, inclusive a caminhada pela quadra. Foi um período estranho, de apreensão e aprendizagem. Andando só, sentia que o vento se tornava presença; que o farfalhar do outono me fazia imaginar uma debandada de anjos; que a natureza me acolhia e aquietava os pensamentos ruidosos, e que a energia divina me abraçava. Era vital crer para não sucumbir.
Mas eventos foram me acontecendo, todos eles de minha responsabilidade, que me impediram momentaneamente de seguir o programa estabelecido e me obrigaram a tomar algumas atitudes mais enérgicas e saudáveis. O que foi muito bom.
Depois da pausa, o retorno. Agora já não me sinto prisioneira do medo. Obviamente, a vacina foi fundamental na mudança de perspectiva, pois, além de desencadear uma resposta imunológica, produziu uma resposta psicológica. Positiva.
Então, aqui estou eu usufruindo o bem maior da vida. A cada passo, descubro novas melodias – amo o canto dos pássaros em diferentes sotaques –, algumas surpresas e também melancolias… Uma casa imponente irrompeu do chão, e no aclive, uma doce morada floresceu, com horta e tudo. Já meu amiguinho pet continua acorrentado, pobrezinho, inclusive a uma distância maior da cerca onde ele se encostava para os afagos. E a pitangueira da esquina foi mutilada bem na altura do coração. Só ficaram os braços abertos sangrando… Um crime a derrubada em plena frutificação, mas, fazer o quê! Acho que havia o temor de as frutinhas vermelhas se assarem na rede elétrica… E tem os sete anões num canto de imenso jardim. Os coitados nem imaginam que o universo infantil foi irreversivelmente invadido por personagens de terror, como a Slendrina, a Granny, a Scary Teacher… Sua Branca de Neve perdeu a vez.
Enfim, enquanto procuro me desfazer de bagagens pesadas – inclusive a “pochete” abdominal – vou trocando o “modo sobrevivência” pelo “modo criativo” no complexo jogo da vida, “como se não houvesse amanhã”.