Com colaboração de Cristiano Migon
Entre os fatos relatados, estão agressões, invasão de apartamentos, ameaças e falsificação de provas. BM afirma que precisa de denúncia formal para abrir inquérito e investigar ação no condomínio do Ouro Verde
Moradores do Residencial Novo Futuro, bairro Ouro Verde, relataram situações de truculência e abuso de poder policial nas ações do Pelotão de Operações Especiais (POE) e Patrulhas Especiais (Patres) ao longo dos últimos meses. As denúncias envolvem roubo, agressões físicas e psicológicas, invasão de apartamentos sem ordem judicial, revista de crianças sem justificativa, ameaças de morte, falsificação de provas e oferecimento de drogas a moradores em troca de informações.
O medo da repressão se tornar ainda mais intensa deixa os moradores receosos de revelar seus nomes ou de apresentar denúncia formal aos órgãos de segurança. Mesmo assim, eles planejam levar um abaixo-assinado direto para a Corregedoria Geral da Brigada Militar e denunciar a situação ao Ministério Público (MP).
Para a maioria dessas pessoas, avistar uma viatura é sinônimo de pânico e medo. Eles contam que querem a presença policial dentro do condomínio, mas relatam que a violência desmedida levanta dúvida se a Polícia realmente veio para proteger ou para perseguir e incriminar. O sentimento é compartilhado por crianças e idosos, moradores que vivem no Novo Futuro desde sua inaugaração, em 2011.
Do outro lado, o comando do 3º Batalhão de Policiamento de Áreas Turísticas (3º BPAT) enfatiza a necessidade de apresentar denúncia formal e de acreditar na lisura do julgamento militar, mais rígido do que os tribunais civis e descolado de qualquer relação corporativista. Na perspectiva do comando, todas as denúncias são passíveis de investigação e deve haver o mesmo tratamento entre as pessoas, independentemente de onde elas vivam.
Contudo, o comando também enfatiza que o Novo Futuro é uma área conflagrada e que não é admissível que haja um número tão alto de homicídios no local (quatro, somente neste ano). Para eles, muitos moradores são reféns de poucos traficantes que dominam os prédios e sentem medo de denunciar o crime organizado, o que dificulta investigações e apreensões.
Moradores relatam medo de denunciar abusos da polícia
Pela versão dos moradores, conviver com a truculência da polícia tem sido difícil, mas denunciar a situação pode representar um risco ainda maior. De acordo com um habitante, a situação começou a se intensificar no último ano e piorou com a vinda do reforço de Porto Alegre. “Se a gente denunciar, pode ter uma retaliação pior. Eles já estão perseguindo direto, vindo atrás”, observa.
Ele conta que os policiais autores dos abusos são da Patres e do POE e que para eles o Novo Futuro é terra sem lei. “Eles abordam conforme eles acham que tem que abordar, entram em apartamento sem qualquer ordem judicial, arrombam portas, temos muitas provas”, denuncia.
O morador também afirma que aconteceu um caso de enxerto e que há relatos de um policial que levou dinheiro de morador e , outro, a câmera de vigilância de um dos andares do bloco. Uma mulher também contou que um policial ofereceu drogas em troca de informações.
Na noite de quinta-feira, 15, a reportagem do Semanário recebeu mais uma denúncia. Dessa vez, um morador relata que a polícia bateu em algumas pessoas com pedaços de pau e que estava com drogas e uma pistola com numeração raspada. “Se fizer a ocorrência, matam ou enxertam. Se não fizer, eles continuam fazendo isso aí. Eu falei que a melhor coisa é registrar a ocorrência e tocar para frente. O pessoal está aparovado, está com medo”, conta.
“Quando vejo a polícia, tenho vontade de chorar”
“Desde que inaugurou, a gente mora aqui e durante sete anos, a polícia nunca bateu nas minhas portas. Então sábado (20), eles entraram, arrebentaram. Meu guri sai de manhã, ele trabalha, mas até lá na casa dele eles foram, minha nora recém começou a arrumar, arrebentaram a porta do outro rapaz também, fizeram uma limpa nas roupas, isso era 11h30.
Ficaram uma hora dentro do apartamento do meu filho, eles queriam que a gente desse informação sobre o negócio dos tiros, das mortes. Mas como é que a gente vai saber? Tantas pessoas entram e saem daqui e dão tiro de revólver, isso aqui é um entra e sai. Eles pediram armas, pediram drogas, reviraram tudo.
Se a gente falar, eles já engrossam a voz. Se a gente pede mandato, eles embocam porta adentro e ameaçam bater nos moradores, já entram com revólver na mão. Se a gente pergunta o motivo, eles ameaçam botar no paredão. Esses dias engatilharam o revólver na cabeça do meu guri. Depois disso, eu vejo a polícia e me dá um estado de pânico, eu tenho vontade de chorar”.
“Não viram que é uma criança?”
“Eles estavam voltando, minha mulher mandou ele (filho de 11 anos) no mercado pegar um refrigerante. Estava ele e mais três, então a polícia chegou aqui, parou a viatura e mandou pôr a mão na cabeça. Depois me disseram que só abordoram ele porque pensava que tinha 14 anos. Quando nós chegamos ali, começou a vir todo o pessoal (vizinhos), aí o policial me disse que eu tinha chamado toda população contra ele.
Mas o que eles estavam fazendo? O nenezinho estava lá, chorando, não viram que é uma criança? As mulheres ficaram loucas, o menino lá tremendo, coitadinho. Eles revistaram, disseram que ultimamente os traficantes usam mais as crianças para carregar drogas e matar aqui dentro. Eu disse: ‘Mas olha, vocês estão fazendo isso com uma criança. O piá tem 11 anos, olha como ele tá’. Aí ele me respondeu: ‘É, mas tem criança matando aqui dentro’. O meu filho ficou com medo. Por três dias a mulher teve que levar ele para a escola, se ele via uma viatura da polícia, já nem vinha para casa, ficava dentro do colégio, com medo”.
BM quer investigar e propõe reunião com moradores
O Novo Futuro é considerado pela inteligência da BM como um lugar conflagrado. A polícia tem relatos de famílias que foram expulsas por traficantes, o número de homicídios é muito elevado e a lei do silêncio impera entre a maioria, que tem medo de sofrer represálias dos criminosos que dominam o lugar.
Sobre os relatos de abuso de poder policial e truculência, o comandante Alvaro Martinelli se diz surpreso. Ele enfatiza que até o momento nada havia chegado até a corporação e que é necessário que haja denúncia formal para abrir investigação. Na sua opinião, não é admissível qualquer tipo de prática abusiva por parte das forças policiais.
Na perspectiva do capitão da BM, Diego Caetano de Souza, não há como os moradores ficarem amigos da polícia porque há venda de drogas no local. “Ou eles ficam inertes, ou ficam do lado do bandido. Porque se ficarem no lado da polícia, eles morrem. Nós não estamos lá todo dia”, afirma.
Caetano também relata que há grande dificuldade em fazer as pessoas deporem e que a BM tem trocado informações com o Judiciário sobre o assunto. “Eles não estão acreditando no sistema, aí eles não depõem. E assim nós não sabemos quem é quem”, ressalta.
Como forma de resolver o problema, o comandante e o capitão sugerem uma reunião que envolva moradores e BM.
Investigação e julgamento
Martinelli enfatiza que todas as declarações precisam ser formalmente denunciadas e que as questões têm que passar por um processo de investigação interno. “Todo inquérito que envolva policiais militares tem um rito. Um prazo de início, de conclusão e, a partir dali, ele é remitido à análise do Ministério Público Militar. É o mesmo rito da legislação de crime comum”, compara.
A diferença, segundo Martinelli, é que a Justiça Militar é mais rígida, porque analisa somente os aspectos técnicos do processo. “É um conceito equivocado que a Justiça Militar é corporativista”, afirma. Ele aponta que o inquérito vai passar por um promotor e um juiz.
Sobre o caso específico do Novo Futuro, o comandante insiste que os moradores apresentem denúncia. “A pessoa é chamada, é ouvida na fase inquisitorial, depois ela é ouvida na fase processual e então isso vai a julgamento”, explica. Segundo o comandante, não é correto que todos os moradores do condomínio paguem pelo erro de poucos. “Se existem ali delinquentes, existe também uma maioria esmagadora de pessoas que trabalham, que estudam e só querem lugar para morar”, comenta.
Ele é bastante enfático quando diz que não tolera qualquer tipo de prática abusiva por parte das forças policiais. “Nós somos extremamente legalistas. Você pega um tiroteio, ele te dá um tiro que pega no colete. Você dá um tiro de volta, que pega na perna. Mesmo assim, você tem que chegar até ele, desarmar e encaminhar para o atendimento médico”, exemplifica. Na sua perspectiva, deveria ser regra que policiais e viaturas portassem câmeras de segurança.
Não há protocolo específico para orientar o POE ou a Patres em operações no Novo Futuro, na medida em que a lei precisa ser respeitada. “Se o policial fizer mais, ele pode estar sendo abusivo. Se fizer menos, ele está se omitindo. Então é aquilo ali e pronto, a lei não é flexível”, argumenta.
Cenário de violência e opressão do tráfico
Martinelli afirma que cidades de 15 mil habitantes não têm tantos homicídios quanto o condomínio. Ele vê o local como uma área onde delinquentes se aproveitam de pessoas em situação de fragilidade social para impor poder. Outra questão é a desapropriação de apartamentos por membros do crime. “Eles chegam e dizem que a partir de hoje, tua casa é depósito de droga. É aquela conversa que se resolve ali mesmo. E, o pior, pessoas expulsas continuam pagando as prestações e ficam bem quietinhas” relata.
Isso dificulta as investigações e a situação se torna ainda mais grave pela falta de cercas, portão e monitoramento em vídeo. Assim, pessoas podem circular livremente pelo pátio. “Por que não se busca o conserto disso? Por que não se busca manter o controle dos moradores dali? Por que não se solicita uma auditoria pra saber, via Caixa Econômica Federal, quem são as pessoas que foram contempladas, quem são as pessoas que estão morando e quem são as pessoas que foram expulsas?”, questiona.
De acordo com o comandante, a única forma de não ter perseguidos e baleado no pátio é reativar os equipamentos de segurança. “Assim o cara entra e se identifica, como acontece em qualquer condomínio”, compara.
Principal problema é a desigualdade social
Além de ser um problema de polícia, o comandante compreende a situação como um problema social, de inclusão. Segundo ele, não é admissível que uma cidade desenvolvida como Bento Gonçalves tenha pessoas que vivam às margens. “O morador do Novo Futuro tem que estar dentro da UCS junto com o morador do São Bento, discutindo ideias de como vamos melhorar essa cidade”, enfatiza.
Ele considera que o verdadeiro estado de exceção é decorrente da desigualdade. “Não se oportunizam oportunidades iguais para pessoas socialmente desiguais. É uma questão social, se a policia
resolvesse alguma coisa o Rio de Janeiro não estaria da maneira como está hoje”, argumenta.
Martinelli diz acreditar que as pessoas podem ser melhores e que assim os problemas vão ser resolvidos. “Primeiro lugar é o ‘maconheiro’ parar de fumar maconha, é o traficante dizer que a partir de hoje não vai mais viver do tráfico, que vai arrumar um trabalho e vai ter uma vida retilinea. Se eu não for utópico, então vou estar desacreditando do país que eu moro, no serviço que eu faço e nas pessoas como seres humanos. Eu tenho que acreditar nisso. Tenho que acreditar que o lado bom pode trazer uma mudança de comportamento”, idealiza.