Um grande desafio que a cidade tem no enfrentamento à violência é quando se trata de fatos contra crianças e adolescentes. A dificuldade começa na tentativa de conseguir dados oficiais e mapear onde mais ocorrem os casos. Na Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (Deam), que cuida da investigação desses crimes, é impossível filtrar no sistema as ocorrências por idade. A Brigada Militar (BM) enfrenta o mesmo problema. Para descobrir a idade da vítima, é preciso olhar cada registro, um por um, uma tarefa impossível.

A responsável pela Deam, delegada Deise Salton Brancher Ruschel, diz que a sistematização da polícia é relativamente nova, comparando com outros órgãos. O único dado possível de filtrar é estupro de vulnerável, que nesse ano soma 43 registros. Mas ela salienta que os números de violência contra menores que chegam aos órgãos competentes não representam o total de casos. “Esses números não refletem a realidade, porque, nos diálogos que temos com a rede, que é formada por escola, enfermagem, hospital, posto de saúde, assistência social, a gente ouve relatos, conversas, não sobre casos específicos, mas se tem a ideia de que existem muito mais, porém as pessoas não denunciam”, diz.

Um dos motivos, segundo Deise é que a maioria dos crimes acontecem no âmbito familiar. “A criança absorve esse segredo e não fala. Quando ela tem coragem para contar, as pessoas que estão ao redor dela, muitas vezes, desacreditam. Em Bento, temos um Comitê que cuida desses casos. Estamos fazendo um trabalho intenso com as pessoas da rede, para que elas estejam preparadas para acolher essas vítimas e também atender os familiares. Tudo com intuito de proteger a criança e o adolescente”, afirma.

Quando é violência familiar, geralmente a Polícia Civil (PC) já tem um acusado apontado, mas a delegada ressalta que é um inquérito em que a prova é difícil e demorada. “Chamar as pessoas para falar sobre isso não é fácil. Não é bom trabalhar com esse tipo de crime. Não faço porque gosto. Alguém tem que proteger essas crianças. A criança não entende que o errado foi o outro. Ela se sente culpada. Para ela, falar é quebrar um segredo”, aponta.

Os casos que chegam na Deam são os mais diversos. Porém Deise esclarece que são poucos. “Temos desde maus tratos, que os pais perderam um pouco o controle na correção, até casos mais graves em que a criança fica muito marcada, machucada, traumatizada. Há ocorrências até em que o menor não quer mais voltar para casa e precisa ser acolhido em outro lar. Cada caso tem sua gravidade e sua análise particular. O trabalho tem que ser bem feito, com o mínimo de dano para a criança”, respalda.

A Brigada Militar (BM) atende inúmeras ocorrências de crianças em situação de vulnerabilidade. O major Luis Fernando Becker, que atualmente responde pelo comando do 3º Batalhão de Policiamento em Áreas Turísticas (3º BPAT), diz que existem desde casos que as crianças são utilizadas de forma indevida, como para pedir esmola, até casos de agressão. Mas são poucos os fatos que chegam diretamente pelo 190.

Segundo ele, tem casos que um vizinho vê uma criança sendo violentada, chama a BM, que comparece no local, verificar o que aconteceu, então aciona o Conselho Tutelar. “Geralmente são crimes que não têm testemunha, ocorrem dentro de casa. Para o fato chegar até a polícia se tem uma barreira maior. Ao mesmo tempo, se tem uma certa dificuldade em configurar o crime, porque tem a voz de uma criança. É uma ocorrência delicada de se atuar porque envolve muito o seio familiar, questões que não são tão fáceis de se identificar. Tem que ir até lá, ver se vai entrar ou não, conseguir chegar até a criança, verificar a situação”, declara.

Para falar sobre o ocorrido e denunciar, Becker salienta que a criança vai ter que superar a dificuldade de ultrapassar o convívio familiar. “Normalmente, o fato tem que ser muito grave, porque com quem ela vai ficar depois? Não é qualquer acontecimento que vai fazer o juiz tirar ela do seio familiar. Muitos casos permanecem nas lacunas, acabam sendo cifras negras que não se sabe os fatos”, comenta.

Denúncias chegam nas escolas

Como é no ambiente escolar que as crianças passam boa parte do seu tempo, muitas denúncias são feitas através dessas instituições. Muitos desabafos são feitos aos instrutores do Programa Educacional de Resistência às Drogas e à Violência (Proerd). “No decorrer das atividades, surgem informações que as crianças mesmo trazem aos policiais, que elas teriam sido vítimas de violência. Então é repassado para a escola, para ser feito o encaminhamento correto. Isso acontece porque a vítima precisa ter um vínculo com a pessoa para poder falar”, destaca Becker.

Educadores também acabam ouvindo relatos. Alguns colégios dizem que esse ano não houve a descoberta de nenhum caso de violência familiar. Outras afirmam que há casos, mas são poucos que os menores relatam. Em alguns locais, como na Escola Estadual de Ensino Médio Imaculada Conceição, muitos fatos são descobertos porque os alunos mudam de comportamento ou começam a apresentar dificuldades de aprendizagem.

Quando o professor nota que há algo estranho, é feito o encaminhamento da criança para atendimento psicológico, que vai atender e acompanhar o menor, e acaba descobrindo se houve violação de direitos, esclarece a vice-diretora da instituição, Mirte Laura do Rosário. “Sempre que chegam denúncias, a gente passa para o Conselho Tutelar. Muitas vezes, os alunos não falam. A gente tem outros meios. Quando vemos que a criança está muito triste ou seu rendimento é baixo, fazemos um relatório e encaminhamos para o serviço de psicologia, porque a gente não sabe o que está acontecendo”, diz Mirtes.

Na Escola Municipal de Ensino Fundamental Professor Ulysses Leonel de Gasperi, que fica no bairro Municipal, os relatos que chegam também não são tão frequentes, diz a supervisora e orientadora do colégio, Luciane Dutra Ribeiro. “Quando a criança conta, é mais como um desabafo. A gente logo encaminha, porque não dá para deixar. Assim que ficamos sabendo, acionamos o Conselho Tutelar. Temos também uma microrrede aqui, que une saúde, assistência social e educação. Qualquer suspeita, conversamos e já encaminhamos para o serviço responsável”, afirma.

Para ela, o que mais chega são notícia de violência psicológica e uso de entorpecentes, que causam desestrutura na família. “A gente ouve conversas, não chega nada claro para nós. A falta de recursos já gera um desequilíbrio. Estamos sempre alcançando o material básico. A escassez para suprir as necessidades básicas já é uma violência contra essas crianças. Vamos ajudando porque as carências são muitas”, finaliza.

As marcas que ficam

As crianças em situação de violência são atendidas pelo Centro de Atenção Psicossocial Infantil (CAPSi). Os casos que têm chegado em maior peso no serviço são relatos de abuso sexual, porém a psicóloga que atende no local, Janice Cavalini, diz que, se for feito um levantamento, deve existir muito mais casos de agressão e violência psicológica do que de estupro de vulnerável.

Quando chega o caso, a criança fica em atendimento. “Prezamos muito a questão de trabalhar a família, que também precisa. Estamos sempre olhando o todo. Abuso sexual está sendo muito mais falado, mostrado, então isso acaba sendo mais aberto. Mas ainda tem muitas famílias que acreditam que bater não é uma violência ou acham que chamar o filho de burro é uma forma de educar”, diz Janice.

A assistente social Anaquel Pereira afirma que quem presencia ou sabe de violações contra menores tem a obrigação de denunciar, mesmo que seja apenas uma suspeita. “Muitas vezes, a violência física e psicológica traz mais prejuízos do que o abuso sexual. Temos uma cultura de ver a criança como um objeto, de bater, passar a mão. Se a pessoa não entende que não pode espancar, violentar, ela tem que ser penalizada perante a lei”, diz.

Como denunciar

Denúncias podem ser feitas pelo telefone através do Disque 100, diretamente no Conselho Tutelar (991595744) ou na Deam (34542899).

Fotos: Elisa Kemmer