Doca foi chegando num passito trôpego, com o peso dos anos na curvatura das costas, onde se apinhavam vários centímetros de seus quase dois metros de altura, típico de quem passara a vida trabalhando na lavoura.

-“Bueeenas! Entonces”, Seu Elya, o senhor arranja qualquer “canton” pra este velho que a morte não quer levar?

Seu jeito simples e direto marcado por uma linguagem que misturava vários sotaques conquistou de imediato o italiano com cara de durão e coração de pão.

-Sì, naturalmente! Onde comem nove, comem dez.

Soube-se então que ele passara quase oitenta anos servindo aos patrões, feito burro de carga. Quando a doença limitou seus movimentos, ele foi liberado. Sem eira nem beira, zanzou pelas estradas até acabar na porta certa.

No começo, as crianças ficaram apavoradas. Nunca tinham visto pessoa tão diferente. Um dos olhos, vazado – souberam mais tarde que o fato ocorrera durante corte de cana – e a boca, torta – sequela de um acidente vascular cerebral. Mas, com o passar do tempo, a sutileza de espírito foi se sobrepondo ao aspecto físico, e os pequenos aprenderam a respeitar o velho.

Doca ganhou uma casinha de um cômodo, perto da casa maior. Nunca lhe faltaram comida e cuidados. E alguma aguinha de cana “mode de passar a dor de dente”. À rapaziada das redondezas que gostava de se divertir às suas custas, ele avisava: “Pra se meter comigo tem que mijar mais alto do que eu!”

O homem, analfabeto de pai e mãe, que foi presenteado com a certidão de nascimento aos noventa anos pela família que o acolheu, era sábio.  Fazia vaticínios a respeito do caráter das pessoas – e sempre acertava. Interpretava os sinais da natureza, como o canto dos pássaros, o movimento das nuvens, as cores da Lua…, para fazer a previsão do tempo. Que invariavelmente acertava. E toda vez que ouvia anúncios fúnebres pelo rádio, dizia: “O que tem que todo mundo vai e eu fico?’ Só uma década depois, ganharia asas para o voo derradeiro.

Essa história veio à tona porque suas palavras foram lembradas por uma pessoa que, assim como milhares de outras que já não têm vida produtiva, se sente invisível aos olhos dos que a cercam.  Quase ninguém a vê, quase ninguém a ouve, especialmente agora com as restrições da pandemia. E a invisibilidade dói…