Em homenagem aos imigrantes italianos, a quarta geração dos Cainelli preserva um acervo de antiguidades doadas por descendentes das primeiras famílias da região, no segundo piso de uma casa centenária

O pequeno Museu Familiar Cainelli, em Tuiuty, que abriu as portas em 2004,— simbolicamente, o ano em que o Brasil institui o Dia do Museólogo (comemorado dia 18 de dezembro) em seu calendário oficial —, é um exemplo de que os esforços de resgate e preservação da história não se encontram somente nos museus centrais, como o Museu do Imigrante em Bento Gonçalves e o Museu Casa de Pedra em Farroupilha, mas também em recantos do interior.


Localizado às margens do Km 202 da BR 470, da arquitetura ao acervo, a centenária casa amarela da família Cainelli é inteiramente uma homenagem aos imigrantes. No piso de baixo, feito em pedras, ao estilo das construções mais antigas ainda existentes na região, fica a loja onde é degustado o vinho, símbolo-mor da imigração italiana; mas é escada acima, no andar superior, todo em madeira, que voltamos definitivamente ao passado. Como que transpondo um portal do tempo, o visitante se depara com uma réplica minuciosa de como eram as casas daqueles que, há mais de 140 anos, alicerçaram o que hoje chamamos de Serra Gaúcha.

Ambientação que vai além dos móveis e utensílios que preenchem a visão, se estendendo para os demais sentidos, com o auxílio da música da época e o ranger do chão de tábua, e pelo aroma característico de antiquários.
Casada com Roberto Antônio Cainelli, 66 anos, quarta geração da família em Tuiuty, a professora aposentada, Bernardete Angheben Cainelli, 57 anos, é quem acompanha os visitantes no memorial. Segundo ela, o espaço não deve ser visto como uma homenagem à sua família, mas a todos os italianos que fugindo da miséria, como os Cainelli, se aventuraram a cruzar o oceano Atlântico para aportar em terras desconhecidas, em busca de uma nova vida.

Dessa forma, embora a casa tenha sido erguida, ampliada e resgatada por diferentes gerações dos Cainelli, o acervo é constituído por doações de diversas famílias da Tuiuty e cercanias. “É um patrimônio que faz parte da comunidade, veio todo daqui, herança dos primeiros colonizadores. As pessoas comentavam que tinham objetos guardados que não usavam e nos pediam se gostaríamos deles, e isso foi se espalhando entre os vizinhos”, destaca.


Por ter lecionado por 30 anos na escola Ângelo Salton, em Tuiuty, Bernardete conta que foi pelos contatos com alunos e pais, que peça a peça, foram garimpados os objetos, aos quais se assomaram também pertences pessoais. Somados a ordenação feita por uma museóloga e a disposição dos cômodos, o crescimento do memorial se deu de forma natural. “A peça mais antiga é uma máquina de costura a mão de uma tia do meu marido. Também temos móveis que meu bisavô fez para minha avó, quando essa casou na década de 1920, e que fui encontrar escondido em um celeiro da minha casa”, lembra.

“Um povo sem memória não sabe de onde venho e nem para onde vai. Por meio da história contada pelos objetos, queremos recordar que todo legado herdado por nós é fruto de privações, sofrimentos e coragem das primeiras gerações. Penso que o museu é uma forma de homenagear todos Joãos, Antônios, Franciscos, Marias e Joanas, personagens incógnitos, que não aparecem nem nas fotografias e nem na história, mas que estiveram lutando lado a lado para dar vida ao que vemos hoje”, Bernardete Angheben Cainelli


Assim como os móveis da avó, segundo conta Bernardete, a maior parte dos objetos foi feita manualmente pelos imigrantes e descendentes, que em suas primeiras gerações além da falta de recursos, tampouco tinham fácil acesso ao comércio formal. Conforme a cidade e as famílias foram progredindo, as peças obsoletas, foram sendo substituídas e, muitas delas, perdidas com o passar do tempo. Poder recuperar e resguardar alguns dos objetos restantes se torna, assim, um modo de manter viva e honrar essa história. “Os italianos não tinham vergonha de suas coisas. Eram agricultores pobres e falavam ‘errado’, não davam valor ao que faziam.

Assim que puderam, foram se livrando e comprando coisas novas. Por isso, muita história se perdeu no tempo. Felizmente, parte desse orgulho está sendo resgatado. Se antes ‘colono’ foi um termo pejorativo, agora é algo que buscamos valorizar e mostrar como parte de nossa identidade”, assinala.
Nesse sentido, lamenta que parte das pessoas da região ainda tenha dificuldade em valorizar suas raízes, o que pode ser observado, por exemplo, na origem dos visitantes. O número de pessoas locais que visitam o espaço é ínfimo se comparado ao de turistas. “Quem vem de fora costuma se emocionar com o que contamos. Alguns são descendentes de italianos que vivem em grandes centros, onde a história se perdeu e quando entram aqui, lembram-se dos avós. Recordo de um senhor que desceu as escadas chorando, pois disse que sentiu o avô tocando sua cabeça, como costumava fazer quando ele o visitava, na infância. Por outro lado, apesar de grande parte da região ser de origem italiana, poucos são os que se interessam em visitar a história”, lastima.

A casa amarela e os Cainelli

Embora Bernardete destaque, que ao receber os visitantes, é evitado falar da família Cainelli, visto que o foco do memorial é homenagear todos os imigrantes italianos, a história de Gasparo e Maria Cainelli e de seus descendentes merece, ao menos, ser sublinhada enquanto exemplo de como era a vida dos primeiros imigrantes a chegar em Tuiuty.


Em meio à crise agrária e a miséria que se alastravam no norte da Itália em meados de 1870, fizeram com que cerca de 20 milhões de italianos deixassem sua terra natal para enfrentar o desconhecido no outro lado do Atlântico. Entre os cerca de 5600 trentinos que desembarcaram no Rio Grande do Sul, estava Gasparo Cainelli, vindo de Tirol, Maria e o filho do casal, que como tantos outros, não resistiu a longa travessia de 40 dias em alto mar.

Esse era apenas o primeiro grande drama dos Cainelli, que assim como os Tomazi e outras famílias que desembarcaram em Montenegro, e caminhavam até os lotes destinados para eles, em Tuiuty, até então nada mais que uma selva.


Apesar da falta da documentação, imagina-se que a primeira casa da família tenha sido bastante rudimentar. A casa amarela, onde hoje se abriga o memorial, data do início do século XX. “Sabemos um pouco da história, pois quando começamos a recuperar ainda tínhamos três tios vivos, dois Cainelli, netos do Gasparo, e uma tia. Agora não restou ninguém dessa geração”, destaca Bernardete.


Na estrutura do piso inferior fica claro as duas etapas construtivas da casa. De um lado, as paredes levantadas por Gasparo, com pedras irregulares e sem cimento, do outro, uma extensão cimentada, obra do primogênito Ricardo, o qual herdou a residência. “Ele emendou a casa, em 1920, 1930, pois teve 12 filhos. E para caber todo esse povo, teve que ampliar o espaço”, sublinha.


Na primeira parte da década de 1935, Ricardo e os filhos abriram a indústria de bebidas Adolorata — uma homenagem a como era então conhecida Tuiuty —, que vendia dois tipos de vinho. Na década de 1970, o negócio chegou ao fim, com cada um dos irmãos tomando novos rumos. O terreno com a casa, bem como o restante das terras, foi então vendido.
Após 30 anos fechada, ela foi então recuperada por Roberto, que tinha o sonho de recuperar a vinícola iniciada pela família. Sem pretensões e ao acaso, com isso também era iniciado o então denominado “Museu Cainelli”. “Na época estava se criando a rota turística e outros integrantes nos convidaram a participar. A ideia não era montar um museu, o que pensávamos era recuperar a vinícola. Tivemos assessoria do Sebrae que nos deu a ideia de montar o memorial no segundo piso, o qual estava desocupado. E aí tudo começou”, finaliza.