Pois um dos textos que mais me impressionaram em minha vida escolar foi “Uma amizade sincera” da fantástica Clarice Lispector. Tinha eu doze anos quando o li pela primeira vez e até hoje não canso de reler, como fiz ainda há pouco.
Eu também cometi um texto sobre esse inesgotável tema da amizade que quero dividir com você.
Éramos grandes amigos, desses com quem se deixa a chave da casa e do coração.
Éramos inseparáveis, porém não usávamos relógios ou calendários para marcar nossos encontros. Encontrávamos quando possível , e se não era possível, dávamos um jeito de cultivar nossa sincera amizade. Compartilhávamos não só nossas alegrias e coisas boas da vida, como também nossas fragilidades e crises de choro.
Umas das poucas coisas que não compartilhávamos era a paixão pelo time de futebol: ele era colorado doente e eu gremista para o que desse e viesse.
A nossa amizade ocupava as molas da rão para saltar sobre as pedras ocasionais da cara amarrada e de outros revéses do cotidiano. Conosco não havia tempo feio. De mais a mais, tínhamos horror a tempestades.
Não éramos, porém, desses amigos que se fazem às pressas e aos montes, como pratos de pipoca. Passada a euforia dos primeiros encontros, a amizade logo estoura e nada mais resta do que um gosto de sal na boca. Nos dias que correm é muito comum denominar de amigo um simples conhecido com que se trocou meia dúzia de opiniões sobre vinhos e comida. Também é fácil chamar de amigo alguém que não acha estranhas nossas esquisitices como a fazer adornos de barba ou colorir as axilas.
A verdade é que éramos amigos de longa data, desde o tempo em que ainda usávamos calças curtas. Conhecemo-nos em uma situação meio hilária. Meu estava atacando um casa de marimbondos com pedras quando passei por ele de bicicleta.
– Quem está apanhando mais? – perguntei em tom de deboche.
– A sua mãe – respondeu-me ele, de pronto.
Sem conseguir desviar-me daquela pedrada verbal, precisei limpar o nariz sangrando com a manga da camiseta meio destruída. Pouco depois, já estávamos infatilizando aquela tarde de final de janeiro.
Depois daquele dia, não paramos mais de frequentar a casa um do outro, porém sem interferências, pressões e cobranças. Nada de um ficar governando a vida do outro como um gavião governando sua presa ou uma fofoqueira governando a vida social.
Tínhamos divergências, mas nos respeitávamos. Sabíamos que o respeito é a melhor escora para manter uma amizade de pé.
Nas horas incertas nos amparávamos e nos defendíamos sem pedir. Se os irmãos de prata, os amigos são de ouro.
Quase vinte anos depois do início de nossa verdadeira amizade, começamos a nos afastar, como um caminho que de repente chega a uma bifurcação. Nossos encontros foram sendo reduzidos a conta-gotas e quando fomos ver já não nos víamos mais. Não houve nenhuma briga. Nenhum desentendimento. Nenhum mal-estar provocado por qualquer coisa que fosse. Apenas dois grandes amigos que foram deixando de lado as coisas em comum: a paixão pela música e a poesia, o futebol de salão às quartas, as viagens nas férias com nossas respectivas famílias, os acampamentos no Praial do Rio das Antas, as trapalhadas, os planos para mudar de vida e pingue-pongue de diálogos impagáveis.
Por certo o filho desse meu amigo deve perguntar muitas vezes sobre o “Dindo” que brincava com ele de pega-pega e esconde-esconde. Meu amigo provavelmente responda com os olhos pendurados em lágrimas: “Pois é meu filho, faz muito tempo que não temos mais notícias do ‘Dindo’, não é?”. Bem lá no fundo ele sabe que um amigo é para a vida inteira, mesmo na distância e na irredutível solidão dos dias.
Depois de adulta, a árvore da amizade abraça o mundo todo sozinha.