Espetáculo de grupos francês e bento-gonçalvense promete transitar pelo mundo onírico e misturar teatro com dança

Ressignificar movimentos do cotidiano, olhar a rotina como algo que transpassa o simples gesto e convidar o público para sonhar. O grupo de dança bento-gonçalvense Trupe Dosquatro e o parisiense À Fleur de Peau estão em processo de criação de um espetáculo que promete dialogar com o abstrato e o concreto, por meio de referências em outros gêneros da arte, desde cinema até poesia.
A peça “Nuances, uma ilha azul num oceano cor de céu” será uma mistura de teatro e dança e a pré-estreia deve ocorrer em outubro, provavelmente em Bento Gonçalves, mas ainda sem lugar definido. A estreia acontece em Paris, nos dias 28 e 29 de novembro.
Segundo Cristian Bernich, da Trupe Dosquatro, a linguagem que eles percebem no trabalho da À Fleur de Peau sempre despertou atenção da Trupe. “Eles já têm 30 anos de companhia, aí a gente teve isso de querer ficar mais perto, de aproximar o que a gente faz”, conta. A parceria tem se formado desde o ano passado, quando Denise Namura, da À Fleur, veio ao Brasil dar uma oficina de dança.
O bailarino observa que a fusão da dança-teatro também é uma característica da Trupe, que busca humanizar o artista no palco. Isso é compartilhado pelo grupo francês, que valoriza os gestos cotidianos na hora de pensar a coreografia. “Vou arrumar meu cabelo, vou me coçar. O público se identifica com o artista, isso vem da dramaturgia”, considera.
Diferente da clássica ou do jazz, Bernich aponta que a fusão extrapola a forma. “Na coreografia nós vamos propor a cena, é um movimento cotidiano, mas também um movimento coreografado”, antecipa.

Encontro de dois caminhos

Denise é brasileira, mas vive na França há 40 anos. Ela já dança há pelo menos 15 anos e nesse tempo conta que desenvolveu um estilo próprio, que invariavelmente traz para sua criação. “A gente absorve os movimentos para começar a fazer parte da dança que conta histórias. De expressão, do humor e da poesia. Isso a Trupe também gosta, nós estamos sempre buscando esses pontos de encontro”, relata.
A artista também comenta que conheceu melhor o trabalho da Trupe Dosquatro desde que está em Bento Gonçalves e que o encontro entre duas linguagens diferentes se tornou claro. “São dois processos, que às vezes têm os mesmos objetivos, mas que vão para caminhos diferentes. E no fim vem esse encontro para ficar gostoso para todo mundo”, avalia.
Acostumada a coreografar em grandes cidades, como São Paulo e Paris, a bailarina percebe a experiência em Bento Gonçalves como bastante interessante. “O fato de sair de São Paulo também é importante para a gente. Para saber o que está acontecendo em outros lugares, onde está a pesquisa, o que está acontecendo no panorama”, afirma.

Criatividade e interpretação

A mistura das linguagens passa por um processo criativo. Segundo Denise, se parte de um tema ou se utiliza de referências (imagens, gestos, figurinos) que forneçam pistas sobre o tema. “O solo de uma pessoa que esquece sempre suas coisas em casa. A gente vai encontrar gestos que são relativos a perda, de não estar mais e, quando o público vem assistir, ele entende”, exemplifica.

À Fleur de Peau e Trupe Dosquatro preparam ”Nuances, uma ilha azul num oceano cor de céu”. Foto: Lucas Delgado

Para Edson Possamai, da Trupe Dosquatro, os indicativos ressignificam algo que poderia ser comum. “Alguém que sempre esquece alguma coisa em casa. Se você parar para prestar atenção, você já viu alguém fazendo isso, assim vamos ressignificando”, explica.
Possamai destaca que todos os elementos presentes comunicam algo, seja o figurino, cenário, luz ou música. “Nada sobra, tudo é pensado para estar ali, naquele momento, para comunicar alguma coisa”, complementa.
O artista compara o espetáculo com as artes plásticas contemporâneas, às vezes difícil de encontrar o significado sem o discurso que acompanha a obra. “Depois que está na parede, ela não é mais sua. O que o artista quis dizer, não interessa mais. Então esse movimento pode significar algo para você, e outra coisa para ele”, reflete.
Como o tema será sonho no seu sentido mais amplo, os grupos convidam o público a sonhar com eles no espetáculo. “Nós caminhamos entre o abstrato e o concreto para deixar o público localizado e livre para interpretar”, afirma Possamai.
Segundo ele, a sensibilidade do artista, que transpassa a obra por referências, também é um elemento que caracteriza o espetáculo. “Existe a obra do artista que já interpretou algo. Então tem a gente interpretando a obra dele e o público interpretando a obra da gente”, comenta.

A fotografia de Robert Doisneau é uma das inspirações para compor a obra. Seu estilo é marcado por fotografias de rua, com registros do cotidiano da vida parisiense. A foto mais conhecida talvez seja O Beijo do Hotel de Ville, de 1950, onde um casal se beija em meio ao movimento. O grupo conta buscar inspiração na estética preto e branco do renomado fotógrafo.

O artista plástico Yves Klein chegou a ser apontado como o precursor da arte contemporânea por alguns críticos, na medida em que explora o monocromático e o imaterial. Segundo Bugdahn, o pintor a performance é característica em suas obras. “Ele conseguiu uma abertura dentro da pintura”, avalia.

Dança como poesia, foto, artes plásticas e cinema

“Nuances, uma ilha azul num oceano cor de céu” será dividido em quatro blocos, cada um como um espetáculo à parte e para representar um artista específico. Michael Bugdahn, da Fleur de Peau, comenta que gosta quando o público entende sua coreografia. “Não chega a ser aquilo de contar uma história, é mais abstrato”, observa.

Segundo Michael Bugdahn (d), Édith Piaf percorre o espetáculo. Foto: Lucas Delgado

O início será baseado no livro O Pequeno Principe. Já o segundo bloco terá como referência o cinema do comediante Jacques Tati, conhecido como o Chaplin francês. O terceiro explora a obra do fotógrafo Robert Doisneau e, por último, o artista plástico Yves Klein. “No final é mais abstrato, uma viagem”, antecipa.
A trilha sonora será marcada, principalmente, por uma junção de músicas da cantora e compositora Edith Piaf, ícone da cultura francesa. “Elas percorrem o espetáculo inteiro, os quatro blocos, é uma costura”, adianta o coreografo.

 

O cinema do comediante francês Jacques Tati, junto com suas linhas retas e caminhos marcados, também desenha a coreografia do espetáculo. Segundo Denise, Tati é desejeitado e tropeça com frequência, ao mesmo tempo em que é estéticamente correto. “Nós temos que trabalhar com a dinâmica, com o humor. Tati tem uma estrutura coreografada no cinema, isso é muito raro”, considera.

O Pequeno Príncipe, escrito por Antoine de Saint-Exupéry, talvez seja a referência mais conhecida do público geral a ser explorada no espetáculo. De acordo com Bugdahn, o livro inspira o início.“Nós começamos com elementos do livro. Vai ter cenas com planetas e ali nós convidamos o público para uma viagem mais abstrata”, comenta.

 

Trupe Dosquatro

O grupo foi formado pelo diretor e intérprete Cristian Bernich em 2005, mas começou na dança-teatro contemporânea em 2011, com a parceria do diretor Edson Possamai. Desde então o grupo vem criando espetáculos que dialogam com diferentes linguagens artísticas.

À Fleur de Peau

A companhia foi fundada pela brasileira Denise Namura e pelo alemão Michael Bugdahn em Paris, no ano de 1988. Desde então já apresentou espetáculos em mais de 15 países, foi premiada e participou de eventos internacionais de renome, como o Holland Dance Festival.