Acho que nunca contei a você que fui um garoto que amava os Beatles e os Rolling Stones. Talvez, você pertença a outra geração, a que ama Luan Santana, Justin Bieber e o Thiaguinho.

Muitos continuam por aqui, ouvindo as músicas e as dedicatórias românticas no alto-falante comunitário. Quero de volta o meu universo sonoro das grandes festas paroquiais em que achava tudo bom, sentia curiosidade de tudo e tinha reservas colossais de tempo.

O domingo festivo começava com o dia ainda nem de todo claro com a queima de fogos e o badalar dos sinos. O foguetório continuava durante toda a parte da manhã, não deixando nenhuma orelha em paz.

Todo mundo vinha de todo lugar pelas estradinhas empoeiradas juntar-se as outras famílias, formando um verdadeiro tsunami humano.

Tinha de tudo no grande dia de festa. Tinha missa solene. Tinha procissão com o santo no andor, devoção e benção. Tinha almoço de confraternização no salão comunitário em que as pessoas comiam até ficarem redondamente desconfortáveis.

Tinha o jogo dos “cavalinhos” em que se apostava uma tabuleta num dos seis cavalos do páreo. Tinha a roda da fortuna em que se podia enriquecer de uma hora para outra ganhando uma lata de azeite Primor ou um pacote de caixas de fósforos Pinheiro Fiat Lux.

Tinha a famosa bodega com tinas de madeira abarrotadas de irresistíveis laranjinhas, sodas limonadas, tubaínas, barés-colas, guaranás e cerejinhas. Tudo isso em meio a serragem e gelo. Tinha mandolates, chocolates, pirulitos, balas fusca e soft de sabor iningualável.Tinha colecionadores de tampinhas de refrigerantes e papel de bala. Sentiu o drama?

Tinha a Banda Santa Cecília que emprestava um colorido todo especial à festa. Tubas, trombones, sax, clarinetes e pratos se desmanchavam em marchas, dobrados e outros ritmos contagiantes.

Nada, porém, era mais emocionante do que o serviço de alto-falante. Com uma mesa de som chapiscada de botões coloridos, microfone, amplificador e cornetas, oferecia entretenimento, prestava serviços de utilidade pública e inspirava flertes e namoricos.

Para chegar ao estúdio era necessário vencer dois lances de escada com degraus minúsculos e traiçoeiros. Apesar do risco, a escada vivia congestionada num alvoroço total.

O estúdio tinha prateleiras abarrotadas de discos de vinil com os grandes intérpretes da música nacional e internacional: Beatles, Elvis Presley, Rita Pavone, Abba, Pepino Di Capri, Roberto Carlos, Antônio Marcos, Carlos Roberto, Moacir Franco, Celi Campello, Jerry Adriani e a turma toda da Jovem Guarda.

O locutor despejava dedicatórias românticas cifradas:

– O rapaz de camisa azul e calça de tergal preta oferece para a garota de saia godê verde e blusa amarela que está sentada na escadaria da Igreja, a guarânia “India”.

A moça homenageada e as amigas dela levantavam-se num zumzum excitado.

De repente, aconteceu o inesperado naquele dia de festa, a surpresa das surpresas:

– A garota de saia plissada azul e de congas também azuis oferece ao cara que está fazendo embaixadinhas com uma tampinha de garrafa, a música: “Era um garoto que como eu amava os Beatles e os Rolling Stones”, com os “Os Incríveis”.

Incrível, mas você por certo há de duvidar se eu disser que esse cara era eu. Meu concorrente direto, o Pança, sacudiu-se como um vira-lata que tivesse levado um jato d’água.

A garota da saia plissada azul era a Laurinha que eu achava não ter chance alguma.

Andei meio tonto por um bom tempo. Era a descoberta do amor juvenil.

Quanto ao Pança, ele precisou aprender rápido que não importa em quantos pedaços o coração foi partido, o mundo não pára esperando que você o conserte.