Realidades que se contrastam. É dessa forma que se apresenta a situação de Bento Gonçalves quando falamos em reciclagem de lixo e conscientização ambiental. Se por um lado, a Capital do Vinho chegou a ser considerada a cidade mais limpa do Brasil com população acima de 100 mil habitantes, em 2017, de acordo com o Índice de Sustentabilidade da Limpeza Urbana (Islu), os relatos das associações de reciclagem e dos fiscais ambientais assinalam que a situação ainda está longe do ideal.

Os problemas vão desde o descuido com os horários da coleta seletiva e a mistura de lixo orgânico com resíduos recicláveis, que acarretam em queda de faturamento para os recicladores e prejuízos econômicos para a Administração Pública, até casos mais graves como a presença de cacos de vidro, agulhas e animais mortos que acabam acarretando em situações de risco para os trabalhadores das associações.

Perigo aos recicladores

Há pouco mais de dois meses, uma das funcionárias da Associação de recicladores Lajeadense, localizada no Jardim Glória, teve que ser encaminhada às pressas a UPA após picar acidentalmente o dedo em uma seringa enquanto fazia a separação de resíduos. “Ela teve que tomar um coquetel para evitar a contaminação, além e fazer uma bateria de exames. O dedo estava muito inchado, foi um susto grande, mas ainda bem que não aconteceu nada mais grave”, conta aliviada a presidente do centro de reciclagem, Tais Follmer. O material teria sido descartado por descuido por uma UBS, que Tais pensa ser a do Municipal.

Embora incidentes com lixo hospitalar como esses sejam considerados raros, a presença de materiais indevidos em meio ao material seletivo parece um fator em comum entre as nove associações que realizam a separação e a reciclagem de lixo diariamente, em Bento Gonçalves. Tais conta, por exemplo, que cortes com cacos de vidro já são parte da rotina. “Já se tornou comum o pessoal se machucar. Chega muito vidro em meio ao lixo, as pessoas não estão separando”, lamenta.

Na Associação de Recicladores do São Roque, a situação é bastante semelhante, embora não haja relatos de ferimentos, conforme pontua o presidente, Antônio Carlos Menosso. “É comum encontrar objetos cortantes, mas felizmente ninguém se machucou ainda. Semana passada, a gente encontrou agulhas. Vem bastante vidro quebrado também, mas esse não tem muito que fazer. A prensa do caminhão de lixo mesmo acaba esmagando e quebrando”, comenta.

Queda de faturamento

Em novembro do ano passado, em reportagem do Semanário, os recicladores afirmaram que ganhavam em média R$50 por dia, mas o valor variava dependendo da quantidade de resíduos reaproveitados. É por isso, que ademais de matérias cortantes e perfurantes que colocam em risco a saúde dos recicladores, as associações também reclamam da presença de lixo orgânico misturado ao seletivo, o que gera maior trabalho aos recicladores, ao mesmo ponto em que comprometem seus ganhos. “Tem cargas que vem com material bom e outras que vem tudo misturado. Isso nos prejudica muito. Em média, aproveitamos só metade de cada caçamba”, protesta Adriano Laydens, Presidente da Associação de Recicladores do Progresso.

Muito além de alimentos, por vezes, entre os resíduos orgânicos que acabam chegando às recicladoras estão papel higiênico, fraldas e até mesmo animais mortos. Segundo Laydens, cachorros e gatos já foram encontrados no Progresso. Situação que se repete também no Universitário, de acordo com o Presidente, Alceu Godinho. “A gente deixou de aceitar o material dos distritos rurais, pois vinha muito orgânico junto, mais da metade era lixo. Vinha de tudo, fralda, animais, até porco”, conta.

Apesar de contar com uma taxa de reaproveitamento do lixo reciclável de 24%, número  seis vezes superior à média do estado e oito vezes à média nacional, o desperdício de material reciclável devido ao contato com o lixo orgânico também gera gastos extras a Administração Pública. Para ter ideia, se a taxa atual permite que município economize até R$ 50 mil mensais de gastos com o lixo, a Secretária de Desenvolvimento Econômico acredita que a economia anual da Prefeitura poderia passar de R$2 milhões, caso 100% dos resíduos fossem reaproveitados, afinal seriam menores os gastos com transporte até o aterro sanitário localizado no município de Minas do Leão, a mais de 170 km da Capital do Vinho.

De acordo com Everton Fraga, gerente da RN Freitas, empresa responsável pela coleta de lixo da cidade, a presença de lixo orgânico em meio ao seletivo se dá, sobremodo, pelo desrespeito aos dias de coleta por parte dos moradores. “Como as pessoas descartam nos dias errados, muitas vezes os caminhões acabam misturando e só se descobre na reciclagem. Às vezes, as pessoas também esquecem de levar e depois nos ligam para voltar. Não respeitam os horários”, lamenta. Segundo ele, o problema tem sido recorrente, sobretudo, nos bairros Planalto, Cidade Alta e Glória.

Da conscientização à autuação

Desde 2014, quando o novo Código Municipal de Limpeza Urbana de Porto Alegre foi criado, mais de R$3 milhões em multas foram aplicados pela Secretaria Municipal de Serviços Urbanos (SMSUrb) para coibir o descarte irregular de lixo e a presença de materiais recicláveis descartados junto a orgânicos e outros rejeitos. As multas para quem desrespeita a separação de lixo e os códigos de descarte podem variar de R$ 351,47 a R$ 5.623,49.

Embora ainda não exista nenhuma lei semelhante em Bento Gonçalves, a Secretaria Municipal do Meio Ambiente não descarta a possibilidade de seguir o exemplo da capital gaúcha e passar a efetuar autuações, caso os esforços de conscientização não sejam suficientes. A princípio, conforme explica o responsável pela pasta, Claudiomiro Laurindo Dias, a ideia é trabalhar com a educação ambiental em escolas e bairros, antes de pensar em punições. “Temos gente na rua todos os dias levando panfletos e batendo de porta em porta. Assim que tivermos recorrido todos os bairros educando os moradores, infelizmente vamos ter que começar a autuar. Tem bairros que passamos e a situação mudou, mas em outros segue tudo igual, está difícil sensibilizar”, lastima.

Segundo o secretário, atualmente duas funcionárias da prefeitura trabalham com as visitas, passando diariamente por aproximadamente 30 residências. A previsão é de que até o fim do ano, 70% dos moradores já tenham sido orientados. “Não podemos admitir que, em 2019, ainda existam pessoas que não sabem que um vidro quebrado na sacola pode causar um acidente como já teve caso com garis e também com recicladores”, exclama.

“As pessoas misturam tudo com o reciclável. Não se sensibilizam que tem gente que lida com a separação de lixo diariamente e que tira o sustento de vida daí”

O secretário-geral da Associação Ativista Ecológica (AAECO) de Bento Gonçalves, Gilnei Rigotto, é outro que defende um maior rigor na legislação municipal. Defende, porém, que antes de pensar nisso seria preciso fortalecer o número de fiscais ambientais para que qualquer nova normativa possa ser aplicada em completude. “Acredito que hoje a Secretaria não está preparada para uma demanda assim. Temos 120 mil habitantes e 46 bairros, os fiscais já não dão conta nem de fiscalizar os problemas ambientais”, sublinha.

A opinião é corroborada também pelo fiscal da SMMAM, Luis Espeiorin, que pontua que atualmente só três fiscais ambientais atuam na cidade cuidando de problemas que vão muito além do descarte do lixo. A título de comparação, 27 fiscais atuam apenas para garantir a aplicabilidade do Código Municipal de Limpeza em Porto Alegre. “Temos três pessoas trabalhando para atender toda a demanda municipal, como assuntos referentes aos animais e cuidados com empresas, a separação do lixo, que acaba sendo considerada menos impactante, infelizmente, acaba deixando a desejar”, sublinha. Segundo ele, a fiscalização do lixo, ainda depende de denúncias.

Mesmo com o baixo efetivo e a atenção voltada a outras demandas, Espeiorin assinala que os casos onde é possível detectar a origem dos materiais que chegam as recicladoras são investigados na medida do possível. Um exemplo claro, conforme conta, foi a punição a uma empresa que descartou tonners diretamente em um centro de reciclagem. “Uma empresa entregou uma quantidade enorme em uma reciclagem, dizendo que era algo lucrativo, que era só desmanchar e vender o que tinha dentro. No entanto, o tonner contém tinta e metais tóxicos que são difíceis de limpar e não tem destinação. Em casos assim, o responsável é notificado e autuado” conclui.