No princípio era o caos Milhas e milhas de palavras sem eira nem beira numa escuridão total ora caindo em abismos profundos ora se arrastando pela aridez de uma linguagem ainda primitiva sem pausas marcadas nem paradas obrigatórias para matar a sede.
 
Ufa! Dá um cansaço… Mas esse sistema de escrita durou séculos. Só a partir do século dezessete, é que a pontuação (assim como a acentuação) entrou em pleno uso. Dizem que foi um tal de Aristófanes quem começou a clarear os textos com sinais gráficos, e outro, Duarte Nunes de Leão, quem completou a sua arquitetura. Já eu desconfio que houve um romance bem caliente por trás dessa história, que chamaria de “Os Cinquenta Tons de Tinta”. Vou resumi-lo:

A Vírgula andava esbanjando presença pelas linhas de um pergaminho de pele de cordeiro, quando, de repente, botou os olhos no belo, magistral, circular Ponto. Como toda vírgula que se preza, ela fez uma parada momentânea, para melhor admirar aquele deus grego. E apaixonou-se redondamente. Dessa união nasceu o Ponto e Vírgula, numa mistura dos dois genes: nem tão definitivo quanto o Ponto, nem tão transitório quanto a Vírgula.

Mas o ponto, que não estava a fim de um destino monogâmico, possessivo e exclusivo, quis experimentar novos relacionamentos, para sentir emoções que a Vírgula não mais lhe provocava. E pela voltas do papiro, ele descobriu uma entonação diferente, por quem se enamorou e de quem recebeu aconchego. Dessa aliança, nasceu o ponto de exclamação.

O Ponto, no entanto, insaciável… Logo, logo, estava pulando a cerca, desta feita dando cheirinho para um amor complicado, desconfiado, inquisidor. Desse laço, nasceu o Ponto de Interrogação.
Enfim, satisfeito. Quem disse? O Ponto tinha um ego maior que ele próprio. Olhando-se no espelho, sentiu um arrebatamento por si mesmo. Daí para a materialização de seu desejo oculto foi um zás: assim nasceram os dois pontos.

Mas nosso personagem gostou da brincadeira. Dois pontos pra cá, dois pontos pra lá, dois pontos pra cima… Opa! Olha aí o trema, gente! Ele chegou muito tranquilo, mas – uma lástima! – foi assassinado num acordo sem pé nem cabeça.

Cada vez mais narcisista, o Ponto fez três clones dele próprio e colocou-os lado a lado, para usá-los em situações dúbias, incertas, não acabadas, reticentes… Era o surgimento das reticências.

A Vírgula estava possuída. Aquele Don Juan DeMarca lhe pusera as aspas, e ela, de raiva… Bom, não vou contar os detalhes sórdidos. Só posso dizer que a descendência é grande: parênteses, asterisco, apóstrofo, cedilha, hífen… E assim a ordem foi feita. Ponto final.