Dos gêneros literários, o que menos faz a minha cabeça é a poesia. Surfo noutra praia… No entanto, estou respirando poesia. E não é pelo fato de nossa cidade sediar o XXI Congresso de poetas do Brasil e de alguns países vizinhos, nem pela beleza de suas performances.

A poesia de que estou falando é uma arte sem palavras. A métrica é livre, não há normas que restringem, nem recursos literários que invertem, subvertem, transvertem, revertem… Sem definições de temas, ela brota que nem a fonte e é cheia de repentes.

Mas onde está essa tal poesia? Com certeza, refletida nos olhos de todos que conseguem vê-la…

Neste início de primavera, por exemplo, os ipês amarelos que iluminam a avenida estão carregados de poemas…

O sabiá que elegeu a paineira aqui, dos fundos, como residência nupcial, canta poesia em três notas – “TI – E – TA”… “TI – E – TA”… “TI – E – TA”…para atrair sua futura companheira…

A torre da Igreja envolta em neblina, que parece suspensa, é poesia concreta, abissal…

O casal de velhinhos que, feitos amálgamas, não se soltam, embora um deles ande mais lento que o outro, é uma ode sublime…

A relação entre o cachorro e o mendigo dividindo o “papeleiromóvel” em frente ao mercado, compõe um poema épico…

A mão que oferta, generosa, e o sorriso que recebe, agradecido, formam um dueto poético…

Não é patético? De tanta poesia, quase começo a escrever poesia…

A Poesia das horas

Na casa de meu tio, havia um relógio de parede antigo – um carrilhão francês ou alemão – cujo som mágico marcou minha infância. Devo ter passado apenas uma noite na casa dele, mas as badaladas – de hora em hora – ainda soam melodiosas nos meus ouvidos. Se aquele relógio fosse um violino, seria um Stradivarius.

Um dia, o relógio parou. Não respondia mais à chave de corda, como um carro sem bateria. Meu tio carregou-o até um ourives, que ardilosamente o convenceu a trocá-lo por um despertador. Em casa, ganhou o lugar de honra, que estava vago.

Na sua santa ingenuidade, meu tio achou ter feito um grande negócio, e só se deu conta da tremenda burrada quando suas noites viraram um contínuo e exasperante tique-taque…

Nunca mais seu sono foi embalado pela poesia das horas. Os sustenidos viraram sustos, até o dia em que ele teve um ímpeto de raiva e jogou o despertador vagabundo na “casinha”.

O ourives? Dizem que, depois de tanta prática na arte da enganação, resolveu ingressar na política…