Jane Krüger

Seja como os pássaros que, ao pousarem um instante sobre ramos muito leves, sentem-nos ceder, mas cantam! Eles sabem que possuem asas.

Victor Hugo

Me criei no interior no Paraná, numa pitoresca cidade chamada Ipiranga. Morávamos numa localidade que chama-se, pasmem, Porcos Bravos. Quando eu era pequena, já não víamos de fato mais tantos porcos bravos, mas antigamente eles eram criados soltos, eram de cor escura, tinham pelo grosso preto e cara de porcos selvagens mesmo. Nas casas dos moradores locais geralmente se via uma caveira seca com uma mandíbula adornada de dentes afiados que devia em tempos anteriores pertencer a um destes porcos bravos.

Nunca me ative se penduravam as carrancas nas cercas e portões das casas por superstição e proteção ou como simples lembrança de um bom toucinho que a família e os vizinhos comeram juntos. Sim, porque dia de matar porco, boi, carneiro ou cabrito sempre era uma festa. Vinha toda vizinhança para o banquete.

Depois de morto, o bichano tinha o seu pelo raspado (com as facas que usávamos na cozinha mesmo ou quando maiorzinha, em dada ocasião, vi uma senhora usando até aparelho de barbear, confesso que a cena era bem engraçada), as entranhas eram removidas, daí lavado o interior do animal com água abundante. Naquela altura, a festa era geral, as galinhas, patos e quaisquer outras aves que ali houvessem disputavam em delírio o que caía no chão, onde as partes das entranhas se misturavam à terra, água, sangue e pelos descartados, mas segundos eram poucos para tudo sumir rapidinho.

Após o ritual da limpeza, vinha a repartição das partes do corpo, agora o animal já estava num estado bem relaxado, a carne flácida, pendia esperando os cortes bruscos mas meticulosamente calculados.

Meus pais e meus dois irmãos são peritos nisso. A melhor parte deste dia festivo estava no final: quase sempre tinha churrasco e pão de casa com melado e, para quem gosta, nata. Para beber, chá quente. Minha mãe dizia que era para não ficar gordura no estômago e evitar passar mal. Geralmente, a receita funcionava.

Essa era uma grande festa, tenho certeza que a maior alegria nem estava na carne e no churrasco em si, mas sim, na alegria de estarmos todos juntos. Vinham os tios, os primos, o Opa e a Oma. Os netos corriam em volta do pátio tentando aproveitar o tempo ao máximo para brincar e na fuzarca, facilmente aconteciam acidentes com as crianças, ah, isso era sagrado. No final de tudo mesmo, o que não faltava era louça, muita louça, panelas e bacias sem fim para lavar.

O melhor de tudo era ouvir a alegria dos adultos conversando do cotidiano, como estava a lavoura, o tempo (ou chovia muito ou então a tal da estiagem era o problema) em meio a muito mate e o cheiro da carne sendo preparada. Dias como esses não se apagam fácil de nossa memória.

Tínhamos uma humilde, pequena e velha casa de madeira. Meu pai era agricultor e não tínhamos nenhum luxo. Não havia chuveiro, tomávamos banho com um balde de alumínio que tinha um pequeno chuveirinho. Lembro de minha mãe saindo todos os dias pelas manhãs para tirar leite de vaca -muitas vezes eu ia junto e gostava de ver ela trabalhar. Lembro nitidamente dos rituais diários para tratar os animais e cuidar de todos os afazeres. Apesar de ser um mundo humilde aquele, lembro o quanto era perfeito e feliz. A paz imperava ali todos os dias.

Como pessoas tão pobres podiam ser tão felizes e viver bem com tão pouco? Apesar das poucas condições, parecia que nada nos faltava.

Não fazia falta uma casa de luxo, me divertia mais andando na carroça do que com o fusquinha amarelo cor de ouro que meu pai adquiriu depois. Quantas viagens nele fizemos! Em sete, meus pais e cinco filhos, e ainda sempre tinha lugar para mais um. Contudo, a pergunta não pode calar, o que alegrava os nossos dias?
Tenho a lembrança vívida de meu pai, quando vinha da roça com a roupa suja e surrada, adentrava o portão de casa sempre cantando e uma de suas canções favoritas era:

“O chão dá se a gente plantar, se a gente não planta, o chão não
dá, o chão não dá… “. E quando não cantava, assobiava.

Aquela alegria invadia toda a casa e esquentava nossos corações.

Não lembro em nenhum momento da minha infância de meus pais murmurando. Eles passaram por inúmeras e grandes dificuldades. Foram tantas colheitas perdidas, muitas frustrações vividas, porém no seu rosto não faltava um sorriso, o olhar sempre carregava uma visão de que o paraíso pode ser aqui na terra embora vivendo nas adversidades mais duras dos desertos da vida.

Diante de tudo isso, concluo que, realmente, da maneira como começamos nosso dia, provavelmente o terminaremos. Se levanto mal-humorado, brigando e amaldiçoando minha vida, meu trabalho, meus relacionamentos ou o que quer que seja, uma nuvem escura se apodera e impera sobre a legalidade das palavras liberadas. Desta forma, não posso me espantar se as coisas vão tão facilmente de mal a pior, o trem simplesmente descarrilha. Contudo, quando conscientemente escolho ser grato, quando decido cantar em vez de murmurar, incrivelmente as nuvens escuras se dissipam e as bênçãos se instalam, trazendo alegria e leveza ao meu dia. Estamos terminando 2021, como o vivemos? Que lições aprendemos? E agora, para 2022, que decido levar?

Gratidão? Murmuração?