Alterações no documento, instituído em 2002, abrem nova frente de discussão sobre temas importantes relacionados aos direitos e deveres dos cidadãos brasileiros

Após oito meses de discussão, a comissão de 38 juristas responsáveis pela reformulação do Código Civil concluiu a votação das propostas de atualização do texto na sexta-feira, 5 de abril. A proposta visa a alteração de mais de mil artigos no atual código, que está em vigência desde 2002.
O anteprojeto desta reforma do Código Civil deve ser entregue ainda nos próximos dias ao presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, trazendo inovações a respeito de diversos temas como família, doação de órgãos e inteligência artificial.

Código Civil é um conjunto de normas que determinam os direitos e deveres das pessoas, dos bens e das suas relações no âmbito privado, com base na Constituição Nacional. O documento está abrigado dentro dos parâmetros do Direito Civil, ramo jurídico que lida com as relações de natureza civil, desde o nascimento até a morte das pessoas. Sua importância está no fato de servir como um ponto de equilíbrio para a preservação da justiça e convivência social igualitária e menos conflituosa.

A advogada Rachel Rocha destaca que é importante a revisão e possível alteração do texto, mas que devem ser feitas com muita cautela. “Os tempos vão mudando, surgem coisas novas, que devem estar previstas no Código, como também a revisão das que já constam nele. Lembrando sempre que as propostas de alterações são feitas em prol da comunidade civil e dos cidadãos, mas como somos um país de proporções continentais e muito populoso, é difícil obter unanimidade nas decisões”, declara.

Doação de órgãos

A proposta prevê que não é necessária autorização familiar para doação de órgãos quando o doador falecido tiver deixado, por escrito, uma permissão para o transplante. Na ausência do documento, a permissão poderá ser dada pelo parceiro ou familiares, seguindo a ordem de sucessão.
O texto preliminar também traz mudanças em relação ao reconhecimento de direito às pessoas, estabelecendo que a personalidade civil de um cidadão tem início com seu nascimento e que sua vida termina com a morte cerebral. Segundo os juristas, isso permite maior segurança no processo de transplante de órgãos. Os direitos de fetos ou nascituros continuam preservados, desde a concepção.

Constituição familiar

O novo Código Civil passa a reconhecer as famílias formadas por vínculos conjugais e não conjugais, ampliando o conceito. A mudança assegura direitos aos membros desses grupos familiares, como previdenciários.
Na proposta, estão identificados como família os casais que tenham convívio estável, contínuo, duradouro e público; aquelas formadas por mães ou pais solo; e qualquer grupo que viva sob o mesmo tempo com responsabilidade familiares, como por exemplo, um grupo de irmãos. No texto, não há reconhecimento e proteção jurídica para famílias paralelas ou poliafetivas, quando há mais de dois parceiros na relação.
O projeto também prevê inserir na lei a possibilidade de reconhecimento de parentesco com base no afeto, chamado de socioafetividade, sem que haja vínculo sanguíneo entre os indivíduos.

Casamento Civil

O relatório preliminar da reforma do Código Civil também avança em relação às regras para casamentos civis e uniões estáveis. O texto retira menções a gêneros e passa a reconhecer que essas uniões se realizam entre duas pessoas, independentemente do gênero e da orientação sexual.
Há também a criação de um novo termo para se referir a pessoas unidas civilmente: os conviventes. A proposta também menciona sociedade convivencial como resultado da união estável, o que não significa a criação de uma nova forma de família.
Atualmente, o texto do Código Civil diz que o casamento e a união estável são realizados entre “o homem e a mulher”. Desde 2011, porém, por decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), casais homoafetivos têm direito à união estável.

Divórcio unilateral

Hoje, existem três tipos de divórcio: judicial, quando há divergência; consensual; e extrajudicial, que pode ser feito em cartórios com consenso do casal. Pelo texto proposto, mesmo sem consenso, uma só pessoa do casal poderá requerer a separação, sem a necessidade de uma ação judicial. Bastaria ir até o cartório e registrar o pedido. Uma notificação é feita ao outro cônjuge ou convivente. Depois de cinco dias, caso não atendida a notificação, que pode ser feita por edital, o divórcio seria efetivado.
Além disso, o projeto preliminar estabelece que, em eventual separação, o ex-casal deverá compartilhar, de forma igual, as despesas com filhos. Também deverá compartilhar gastos que envolvem animais de estimação pertencentes ao ex-casal ou filhos e dependentes.

Reprodução assistida

O Código Civil atual não aborda nenhuma questão sobre reprodução assistida. A proposta em discussão no Senado afasta qualquer discriminação a pessoas nascidas por técnicas de reprodução assistida e traz um regramento para a prática. Proíbe também o uso de técnicas reprodutivas para criar seres humanos geneticamente modificados; embriões para investigação científica ou para escolha de sexo ou cor.
Os juristas concordaram com o reconhecimento da vida intrauterina, proibiram a barriga de aluguel lucrativa e a comercialização de gametas humanos. O objetivo foi conferir segurança jurídica a essas situações cotidianas.

No caso das barrigas solidárias, a prática não deve envolver recompensas financeiras entre as partes, como permitido atualmente pelo Conselho Federal de Medicina (CFM). No projeto, a doação temporária do útero deve ocorrer de alguém com parentesco com os futuros pais. A barriga solidária deve ser formalizada em documento, que deve deixar bastante claro quem são os pais da criança gerada.
O relatório preliminar deixa claro que será proibida a comercialização de óvulos e espermatozoides. Além disso, prevê que não há vínculo de filiação entre o doador e a pessoa nascida a partir do material genético. A doação é autorizada para maiores de 18 anos e médicos e funcionários dos espaços de reprodução humana não poderão ser doadores na rede ou na unidade em que trabalham.

A comissão de juristas propõe permitir o uso de material genético de pessoas mortas, desde que haja manifestação expressa anterior. A proposta determina sigilo para todos os dados relacionados aos doadores, mas prevê que as informações devem ser repassadas ao Sistema Nacional de Produção de Embriões. A medida serve para que os cartórios verifiquem, na fase pré-nupcial, se um casal é formado, por exemplo, por pais e filhos, ou avós e netos. Também fica estabelecido que o sigilo poderá ser quebrado mediante decisão judicial, tanto do doador quanto da pessoa nascida com o material genético. Isso poderá ocorrer, por exemplo, em casos de riscos para a vida e saúde do doador e da pessoa.

Animais

Atualmente, o Código Civil trata os animais como bens móveis. Na prática, apesar de entendimentos diversos no Judiciário, o texto em vigor prevê que pets não têm proteção jurídica, sendo vinculados aos donos.

Na proposta preliminar, os animais ganharam um capítulo inteiro voltado a estabelecer uma nova relação jurídica com esses seres vivos. Pelo texto, os animais passarão a ser reconhecidos juridicamente como seres capazes de ter sentimentos e direitos, tendo direito a uma proteção jurídica especial, que será definida em lei posterior. Além disso, o projeto também prevê que animais sejam indenizados por violências e maus-tratos, para reparação dos danos sofridos.

Este capítulo talvez seja um que apresenta maior divergência no colegiado, uma vez que alguns membros defendem a proposta, enquanto outros a critiquem, pois consideram que esta seria uma tentativa de equiparar seres humanos e animais. Outra discussão é a utilização da expressão “objeto de direito” para se referir aos animais, que pode levar a uma interpretação errônea, segundo os juristas, de que os pets seguem somente como itens de patrimônio dos tutores.

Segurança na internet

A grande inovação é a criação de normas gerais, criando um livro próprio sobre direito digital. Estão sendo propostas questões como a moderação de conteúdo das plataformas, avanços no neurodireito digital, entre outros.

Com relação a herança digital, a ideia, segundo os juristas, é que os bens digitais de uma pessoa falecida, tais como senhas, dados financeiros, perfis em redes sociais e programas de recompensa, como milhas de companhias aéreas, façam parte da herança. A exceção será o arquivo de mensagens privadas, que não poderá ser acessado pelos herdeiros, salvo por vontade expressa da pessoa falecida ou por decisão judicial.

A proposta também estabelece que representantes ou herdeiros poderão pedir a exclusão de perfis em redes sociais da pessoa falecida, desde que não haja vontade contrária expressa. Também será possível transformar o perfil em memorial. A exclusão será feita em 180 dias para mortos que não tiverem representantes legais.

O texto da comissão propõe que as plataformas digitais terão o dever de proteger os direitos e os dados de crianças e adolescentes. Deverão, por exemplo, adotar mecanismos para verificar a idade do usuário e impedir a exibição de conteúdos inadequados.

Há também novas regras para o desenvolvimento de sistemas de inteligência artificial (IA) no país. Segundo o texto, entre outros critérios, devem ser respeitados os direitos fundamentais do cidadão.
De acordo com a Agência Senado, ao longo da semana, os juristas também discutiram e aprovaram emendas ao relatório em relação a temas como sucessão, usucapião, herança, guarda e regras para desburocratizar a abertura de empresas. O relatório consolidado vai se transformar em um projeto de lei que irá tramitar no Senado e, posteriormente, na Câmara dos Deputados, ainda sem prazo definido.