Mandar cortar um terno, costurar o vestido de festa ou até consertar o salto do sapato preferido praticamente caíram em desuso com a produção em massa e a facilitação das compras
Resistir ao tempo. Esse é o desafio diário daqueles que sobrevivem dedicando-se a profissões em extinção e que estão na ativa há mais de meio século. E não é uma luta das mais fáceis, afinal, no mundo do consumo rápido, a sobrevivência, para quem está fora desse eixo, parece estar em xeque em meio a uma contagem regressiva. Mas, se por um lado a concorrência com os avanços tecnológicos pode ser desleal para quem mantém o mesmo ofício há tantas décadas, acredite, esses profissionais resistem ao longo dos anos e ainda se mostram insuperáveis naquilo que sabem fazer de melhor: trabalhar com a dedicação renovada a cada dia.
É justamente essa a rotina de um dos poucos alfaiates ainda resistentes na cidade, Ivo Francisco Corbelini, 81 anos, que exalta sua profissão com a mesma paixão de quando começou, aos 15 anos de idade. Nascido no interior de Lajeado, mudou-se para a Capital do Vinho para servir no Exército. Aprendeu o corte e a costura a convite de um amigo. “Sempre gostei de lidar com roupa, meu forte é roupa”, comenta. Há mais de 50 anos, a galeria Central é o ponto de encontro entre clientes e ele.
Corbelini ressalta que a profissão está em extinção na nossa região, mas em países da Europa a realidade é outra. “Na Inglaterra, por exemplo, não se consegue um corte, é tudo sob medida. Lá não tem confecção, o próprio tecido é diferente. Quando terminar tudo isso, quero voltar e buscar de recordação para as minhas netas um corte inglês”, alega. A profissão foi suficiente para manter sua família estabilizada com a renda gerada. Hoje permanece atuante por amor. “Mantenho aqui para pagar o condomínio, para não ficar parado. Mas se a sala fosse alugada, não teria condições de continuar”, pontua.
Entre linhas e carreteis
Alzira Dias Bravo dedicou 20 dos 49 anos de vida ao ofício de costureira. A oportunidade de mexer com agulhas e linhas veio por meio de uma amiga que a convidou para ajudá-la a costurar camisetas para uma empresa local. “Já tinha uma noção de costura, mas ela me ensinou. Comprei uma máquina e passei a trabalhar em casa, terceirizada desta empresa. Ensinei meu filho mais velho para poder me ajudar”, lembra. Após passar por outra empresa, abriu seu próprio ateliê, há cerca de quatro anos, no loteamento Bertolini. Atualmente, ela faz costuras e reformas no geral.
A costura, de fato, é uma profissão indispensável para a existência da indústria têxtil há muitos séculos. Alzira acredita ter muitas costureiras hoje em dia. “A costureira sob medida está em extinção, mandar fazer uma peça está em extinção, o que não está é a que costura em série e em empresas”, observa. “Há um tempo, as costureiras não queriam mais costurar, digamos, de forma autônoma, porque as pessoas pagavam pouco. Mas, hoje tem bastante mulheres que compram máquina e costuram em casa”, complementa.
Com empresa registrada, comenta que tem muito serviço, no entanto, devido à pandemia reduziu muito a demanda. “Conheço várias que se desfizeram de máquinas e empresas que pediram o material de volta”, lamenta. Após se aposentar, Alzira pretende continuar em meio aos retróses e carreteis. “Me encontrei e vou ficar nessa profissão”, conclui.
A arte dos sapatos
Se por um lado Alzira se apega ao tradicionalismo, há também quem precise se reinventar a cada dia para manter viva a profissão. É o caso do sapateiro Gilmar Jorge Salvador, 57 anos, que há 30 mantém sua sapataria na avenida São Roque. O aprendizado veio do irmão, sócio na época, que trabalhou por alguns anos em uma empresa calçadista.
Pelo tempo, acredita que seja ainda um dos poucos restantes na cidade, período em que ele viu e viveu o suficiente para reconhecer a necessidade de mudança. “A profissão mudou bastante, tem muita coisa que fazíamos décadas atrás e hoje não mais”, afirma. Os exemplos ele tem na ponta da língua. “Hoje colo coisas pequenas de tênis, faço solados ou arrumo bolsas e mochilas. Faço algumas trocas de taquinho de salto por semana, há uns dois anos eram 100”, revela.
Salvador comenta que o tempo de profissão pode ser dividido em dois períodos: antes e após a chegada dos calçados. “Os primeiros 10, 15 anos, foram bons, evoluímos. Depois chegaram os produtos chineses, os calçados mais baratos e uma vez ou outra as pessoas vinham comprar os nossos produtos. Com isso, fomos consertando. Novos não valia muito a pena fazer. Reduzimos o quadro de funcionários, de oito para somente eu e minha esposa”, lembra.
Com a queda na procura, o sapateiro crê que o porvir do ofício está comprometido. “O jovem quer um futuro grandioso e se cair nessa profissão de sapateiro, no máximo, vai se manter, não tem uma perspectiva de evolução. Mesmo, porque, há muitos calçados que se tornaram baratos e descartáveis. O pessoal compra, usa, estraga e compra outro”, enfatiza.
Os mais procurados continuam sendo os de couro, principalmente pela classe média alta. “Naturalmente que comprar os calçados com valor mais alto, os reparos valem a pena fazer. É falsa ilusão que quem conserta os calçados tem poder aquisitivo mais baixo”, comenta. Em época de pandemia, com as escolas e comércio fechados, a demanda diminuiu ainda mais. “A maior parte da nossa clientela é quem trabalha no comércio, que usa o calçado direto, e estudantes com o conserto das mochilas”, expõe.
“É uma profissão desvalorizada, sim. Só quem frequenta o sapateiro que valoriza”,
Gilmar Salvador, sapateiro
Salvador gosta e tem orgulho do que faz. Ao se aposentar, pretende descansar e curtir a esposa, filho e neto. “É engraçado, porque, muitas vezes, as pessoas acham que vão encontrar um senhor velho, aposentado, fazendo biscate (risos). Mas não, esta é a minha profissão, meu ganha pão. É uma profissão desvalorizada, sim. Só quem frequenta o sapateiro que valoriza”, avalia.
Fotos: Franciele Zanon