Após quase dois anos vivenciando uma nova rotina, as consequências do coronavírus vão além de problemas pulmonares. Após uso excessivo de telas, profissionais da saúde alertam para disfunções de visão e para bruxismo

Em 2020, toda a rotina que era costume da população se modificou. Ficar em casa e evitar aglomerações resultou em trabalho, estudos, atividades físicas, consultas médicas, entre diversas outras atividades em frente às telas. Hoje, quase dois anos depois, as consequências para a visão podem começar a ficar em evidência.

A oftalmologista Estéfani dos Santos Cunha explica que o uso excessivo de telas pode ocasionar problemas como miopia, estrabismo e ressecamento ocular. “A miopia apresenta um componente genético importante, porém o uso demasiado de telas pode causar um aumento excessivo no tamanho do globo ocular pela estimulação de receptores muscarínicos, principalmente em crianças menores de dois anos, já que possuem um tecido ocular maleável e que se deforma com facilidade. Também se observou um aumento no desenvolvimento de estrabismo, já que essas crianças são estimuladas a convergir os olhos por mais tempo que o habitual. Além disso, quando estamos concentrados nas telas reduzimos a frequência do piscar, o que ocasiona o ressecamento”, exemplifica.

O cuidado para evitar o uso excessivo de telas deve existir, pois em alguns casos, pode ser necessário até mesmo procedimentos cirúrgicos. “Geralmente, os erros refrativos (como miopia) podem ser corrigidos com o uso de óculos ou lentes de contato. Existe também a cirurgia refrativa, que objetiva eliminar definitivamente as falhas de refração. Além disso, pacientes com alta miopia podem apresentar alterações patológicas na retina que podem necessitar de intervenção cirúrgica”, esclarece Estéfani.

O número de pessoas procurando auxílio nos consultórios de oftalmologia cresceu desde o ano passado. “Aumentou drasticamente! Não só em crianças, mas também em adultos jovens. Estamos observando muitos casos novos de miopia, astenopia (visão cansada) e olho seco. Um estudo publicado no JAMA Ophthalmology, realizado com crianças chinesas, mostrou que enquanto a incidência de miopia era de 5,7% entre crianças com seis anos, durante os anos de 2015 a 2019. Em 2020, o número saltou para 21,5%, dentro da mesma faixa etária”, relata.

Como evitar problemas de visão?

A médica pontua que é ideal realizar intervalos a cada 20 ou 30 minutos de uso de telas, de preferência em ambientes com luz natural. “Durante esses intervalos, é importante tentarmos focar um objeto distante por alguns minutos, como o horizonte, por exemplo. Essa ação propicia o relaxamento da acomodação e consequentemente um descanso para os olhos”, aconselha.

Além disso, para as crianças há orientações mais específicas. “A Sociedade Brasileira de Pediatria recomenda que a exposição ao uso de telas antes dos dois anos seja evitada ao máximo, dos dois aos cinco anos no máximo uma hora por dia, dos seis aos 10 no máximo duas horas e adolescentes de 11 a 18 anos, no máximo, de duas a três horas por dia”, realça.

Novo estilo de vida

A médica oftalmologista Camila Severa afirma que é possível ressaltar dois pontos que foram marcantes na oftalmologia nos últimos dois anos, e que ambos têm relação com a pandemia. “O primeiro é o aumento do número de casos de pessoas míopes. O míope é aquela pessoa que tem dificuldade de enxergar para longe e enxerga bem de perto. Isso aconteceu justamente por causa do estilo de vida reforçado pela pandemia, que as pessoas ficam muito tempo fechadas dentro de casa sem usar a visão de longe”, ressalta.

Além disso, a falta de radiação estimula a miopia. “Quando a gente pega sol, nosso corpo produz uma substância que é a dopamina, que regula o crescimento do globo ocular que causa miopia. O míope tem o olho maior, mais longo”, explica.

O segundo ponto foi o aumento do número de pacientes que procuraram cirurgia para deixar de usar óculos. “Como os óculos tem um impacto bem grande com o uso de máscaras, que as pessoas ou respiram ou enxergam, teve muita gente que nos procurou para fazer cirurgia refrativa, ou a laser ou implante de lente”, conta.

Não apenas o uso de máscara impactou na busca por cirurgia, mas a procura por autoestima e investimento em si. “A cirurgia refrativa normalmente o convênio não cobre, tem que ser total ou parcialmente particular e as pessoas investiram mais”, frisa.

Bruxismo: outra consequência

Outro problema que tem crescido na pandemia é o bruxismo. Segundo o presidente da Associação Brasileira de Odontologia (ABO) – RS – Região Vinhedos, o cirurgião dentista Lucas Lazzari, existe o bruxismo do sono e o diurno. No primeiro exemplo, enquanto a pessoa está dormindo há o ranger ou apertar dos dentes, que geralmente estão associados com microdespertares com duração de três a 15 segundos.

Já o diurno é caracterizado por uma atividade semivoluntária da mandíbula, de apertar os dentes enquanto o indivíduo se encontra acordado. “Geralmente não ocorre o ranger de dentes, e está relacionado a um tique ou hábito. Já o bruxismo do sono é uma atividade inconsciente, com produção de sons, enquanto o indivíduo encontra-se dormindo”, explica Lazzari.

O bruxismo é classificado em duas fases. “O primário, por ser idiopático, não está relacionado a nenhuma causa médica evidente, clínica ou psiquiátrica. Essa forma parece ser um distúrbio crônico persistente, com evolução a partir do seu aparecimento na infância ou adolescência para a idade adulta. Já o secundário está associado com outros transtornos clínicos: neurológico, como na doença de Parkinson; psiquiátrico, nos casos de depressão; outros transtornos do sono, como a apnéia; e uso de drogas, como as anfetaminas”, menciona.

Também há alguns outros fatores de risco associados ao bruxismo do sono, como tabaco, álcool, cafeína, ansiedade, estresse e disfunções temporomandibulares. “A idade representa um fator de risco dominante, o bruxismo do sono diminui com o passar do tempo. Ademais, fumantes apresentam risco aumentado em duas vezes de desenvolverem a doença. Indivíduos que apresentam bruxismo do sono têm de três a quatro vezes mais chances de ter dor orofacial. Nenhum marcador genético, entretanto, foi encontrado para a transmissão dessa condição”, sublinha o dentista.

Lazzari observa que aumentaram drasticamente os casos de bruxismo nos últimos anos. “Uma por causa do avanço da tecnologia, o uso de aparelhos celulares durante a noite pelas crianças, jovens e adultos, fazendo com que a qualidade do sono tenha uma carga horária de sono reduzida. Outro fator que contribuiu para o aumento do bruxismo é a questão econômica que o país está passando. Quem que não fica o dia ou a noite toda pensando naquele boleto que vence amanhã?”, indaga.

Por fim, o odontólogo explica que não há cura para o problema, mas que o ideal é iniciar um tratamento direcionado por um profissional habilitado. “Diferentes linhas de tratamento têm sido propostas: tratamentos farmacológicos, psicológicos e odontológicos. Atualmente, o tratamento odontológico mais utilizado é o das placas oclusais, que deve ser planejada e confeccionada por um cirurgião dentista”, destaca.

Uma outra solução é o tratamento com botox como um dos recursos, mas segundo Lazzari, não é de primeira escolha. “A aplicação da toxina botulínica para tratamento coadjuvante do bruxismo somente o cirurgião dentista habilitado pode realizar. Hoje também existem outros recursos que podem colaborar, como a aplicação de ozônio e acupuntura”, finaliza.