“Não era o centésimo quadragésimo décimo dia de quarentena, porque não sei exatamente como ela estava contabilizando, ou se estava. O apartamento parecia solitário, ora tão afastado no fim de um corredor escuro, ora uma jaula iluminada de vidro fino. De frente para a rua, o andar baixo não era suficiente e sucumbia à balburdia no fim da tarde de um dia quente, no condomínio tipicamente bairrista, do qual normalmente ela não se sentia em casa.


Camuflada na janela, ela só esperava poder espiar sem pretensão, a rua pouco movimentada. Mas precisava esperar escurecer mais. Por um lado, ainda bem que o verão ainda não chegara, assim, logo as crianças entrariam. Por outro, as mãos sempre geladas a deixavam irritada, mas o suposto motivo dava poder a ela. O vinho barato descia como água, algumas lágrimas tentavam rolar para abster a angústia naquele peito, mas estava seco.


Era um misto de frustração, decepção, motivação. Sim, ela ficava extremamente motivada nesses momentos. O inesquecível Magayver faria uma bela obra com esse coquetel de sentimentos. Mas ela não era o Magayver. E como era difícil aceitar isso. Apesar de tudo, tentou, entre algumas tragadas (várias, oh Deus), rabiscar o que ela queria que se materializasse como o propósito da sua vida. Por vezes o cérebro lhe pregava peças, apagando sua memória declarativa. Entre uma ida à janela e um croqui, as palavras se perdiam naqueles poucos metros quadrados. Ela achava que deveria fumar menos. Dane-se.


Era muito criativa quando estava brava e decepcionada. Ela era forte, não queria ter sentimentos ruins, muito menos ter suas boas ideias bem nesses momentos (!), mas algumas pessoas conseguiam penetrar a rija esponja, sorrateiramente. Ela sabe que está lidando com um corte preciso de Fugu. Ela sabe também que nunca terá nada em troca e que, se a lâmina estremecer, ela perde seu avental, sua alma. Quem nunca cuspiu no prato que comeu e elevou seu copo para mostrar que estava ‘cheio de mim’?
Aquela história de que seria bem melhor ser ignorante para algumas coisas…ah, ela gosta muito. Preferia não ter consciência de que o ápice do seu estado alcoólico bucólico criativo estava prestes a chegar ao fim, e que era dia de semana. Teria poucas horas para se recuperar e voltar do mundo paralelo. Ela queria mesmo era ficar lá, onde tudo tem cheiro fresco de esperança.


Queria também, que esse mundo paralelo tivesse paredes acústicas. Ela até tenta estudar Freud, quando volta do trabalho, antes da aula. Mas o cachorro late, o gato mia, o pintinho pia.


Nessas noites, sente angústia, vontade de arremessar coisas, gritar. Mas logo se dá conta que não resolveria. Ela se perdeu nos dias porque não sabia o que estava contabilizando. Tanto que, essas palavras que da sua ‘boca’ saíram, ilustram repetidas noites, que salvaram sua vida e mataram sua angústia, mas que ela sonha, um dia, que desapareçam.”