No mês em que é oficializado o Dia Regional do Suco de Uva, o Semanário faz um resgate histórico apontando os fatores que levaram o produto a deixar de ser coadjuvante, modificando o mercado e se tornando a principal fonte de renda para boa parte dos viticultores do Estado e de Bento Gonçalves

Seguindo uma tendência observada em todo o Rio Grande do Sul, o suco de uva já galga o protagonismo na chamada Capital do Vinho. Para além da inclusão do Dia Regional do suco de uva no calendário do município, data proposta pelo vereador Edson Biasi (MDB) oficializada no dia 18 de outubro, dados levantados pela Embrapa Uva e Vinho comprovam o avanço do mercado e de sua produção.


Em 2018, a produção de uvas americanas e híbridas processadas no Estado destinadas a suco (54%) foi superior à remetida para vinho (46%). Já de acordo com o Sistema de Cadastro Vinícola da Secretaria Estadual da Agricultura, Pecuária e Desenvolvimento rural (Sisdevin/DAS), quase 51 milhões de litros de suco de uva foram produzidos pelos gaúchos. Neste especial sobre o produto, o Semanário faz um resgate histórico, citando alguns dos fatores que levaram a essa transformação, como as mudanças econômicas, a pesquisa, tecnologia, marketing, bem como projeções futuras.

A consolidação do suco de uva


Se desde a chegada dos primeiros imigrantes até o início do cooperativismo na década de 1930, a produção de uvas americanas e híbridas (que correspondem a cerca de 86% da origem das uvas processadas em Bento Gonçalves) sempre foi destinada essencialmente à produção de vinhos, em 2011 o mercado muda completamente e o suco de uva desponta como principal destino para a produção local. Para ter uma ideia, em 2004 apenas 24,3% de toda a uva produzida no Estado era designada à produção de suco, hoje, esse número chega a 54%.


Essa transformação não se deu ao acaso e para entendê-la, segundo afirma o chefe-geral da Embrapa Uva e Vinho, José Fernando da Silva Protas, é preciso fazer uma contextualização histórica e até mesmo cultural. Conforme conta, ao contrário da Europa, onde se produz apenas uvas finas, no Brasil e, sobretudo, na Serra Gaúcha a vitivinicultura se consolidou com base em variedades americanas e híbridas com destaque para a Isabel e a Bordô. “O grande negócio em termo de volume era produzir vinho aqui e comercializá-lo para fora do estado. Cerca de 70% era vendido para outras regiões. O caminhão pipa saia daqui e ia para Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Rio de Janeiro para produzir os vinhos comerciais por aquelas empresas, que eram meras engarrafadoras, em função de que a viticultura nessas regiões sempre teve dificuldades em competir”, assinala.


Grande parte da produção regional se manteve e se consolidou dessa forma até que, na primeira metade do século XXI, com a chegada de diferentes produtos a esses estados, como a sangria e os coquetéis, o mercado se modificou e a venda da uva e do vinho gaúcho perdeu espaço, gerando a falência e a crise de muitos pequenos produtores. “Eram produtos que usavam um percentual pequeno de vinho, mas, artificialmente, tinham cor e aroma de vinho. E na própria rotulagem sempre tinha um ramo de videira, uma pipa, uma taça. Esses coquetéis e sangrias tinham um preço bem mais baixo, o que enxugou a demanda por vinho a granel, e inviabilizou muitas empresas de nossa região”, destaca.

Em paralelo e como resposta a esse cenário adverso, segundo Protas, trabalhos puxados principalmente pelas universidades começaram a divulgar os aspectos positivos do suco de uva à saúde, criando-se um ambiente de referência ao estímulo do consumo desse produto. “A partir desse trabalho, gradualmente, houve uma diminuição da demanda de uvas americanas para elaboração de vinho e um aumento compensatório para o suco”, resume.

Prospecções para o futuro


Se desde 2011, quando se encontraram no mesmo ponto do gráfico, as setas que indicam a produção de uva para vinho e para suco inverterem de posição e seguiram direções antagônicas (a do vinho apontando para baixo, e a do suco para cima), a tendência, diante sobretudo da globalização é que isso se acentue ainda mais.


Embora ainda necessite de assinatura e autorização de todos Estados membros e Parlamento europeu, o que pode levar anos, o princípio do acordo comercial entre Mercosul e União Europeia apresentado em julho deste ano é um bom exemplo disso. O tratado de livre comércio que deve incentivar a entrada de novos rótulos no mercado regional, ao zerar a taxa de 27% cobrada atualmente para importação de vinhos europeus, é vista com receio pelo setor vinícola brasileiro que já sofre para competir com os importados. “O acordo é mais um complicador. Não acredito que o vinho fino nacional possa competir em grandes redes varejistas com importados”, explica Protas.


Embora não acredite que o tratado seja um facilitador para o suco de uva, tendo em conta que o paladar do europeu não é compatível ao sabor das uvas americanas, Protas especula que a competição com os vinhos internacionais deve fazer com que o mercado interno se direcione, cada vez mais, ao suco, o qual já é um produto reconhecido em outras partes do mundo como Estados Unidos e Ásia.

Foco em pesquisa e aperfeiçoamento

A guinada do segmento nos últimos anos também tem guiado o trabalho dos pesquisadores e a tecnologia aplicada pelas empresas para criação de uvas para suco. Dessa forma, embora os números da safra de 2018 ainda mostrem uma predominância de uvas mais tradicionais como Isabel, Bordô, Concord e Niágara, os serviços da comunidade científica estão focados em criar novas e mais vantajosas alternativas. “Nenhuma cultivar é perfeita, todas têm atributos positivos e outros nem tanto. A Isabel, por exemplo, produz muito, tem sabor apreciado pelo consumidor, mas tem uma cor muito fraca; a bordô, por outro lado, tem uma cor perfeita, mas a acidez é alta e o açúcar é mais baixo, além de que não se adapta bem a todos os climas”, exemplifica Patrícia Ritschel, coordenadora do Programa de Melhoramento Genético Uvas do Brasil, da Embrapa Uva e Vinho.


Segundo ela, a função do Programa é auxiliar no desenvolvimento de cultivares que possam agregar às uvas mais tradicionais, proporcionando frutos mais próximos da perfeição. “A ideia é viabilizar a composição de um suco perfeito. Então podemos desenvolver uma cultivar com açúcar bem alto, com acidez menos forte para não atrapalhar no corte, de cor intensa, mas com aroma e sabor mais próximos da Isabel”, explica.

Ainda de acordo com Patrícia, além da qualidade do produto final, o foco também se dá na produção, criando plantas resistentes e mais produtivas. “Se pensarmos nas três uvas tintas tradicionais, aqui na região, a produção de todas se dá em um período de um mês, o que concentra o trabalho na propriedade e no cultivo. Quando reunimos essas três e as outras sete da Embrapa, esse período de um mês passa para 70 dias de safra”, assinala.


Atualmente, além de sete variedades já em produção, a estatal conta com outras quatro em desenvolvimento, sendo que duas dessas estão prestes a serem testadas pelo produtor. Ao passo que todos os tipos lançados até o momento são tintos, uma das maiores esperas é o lançamento da primeira variedade de uva branca para suco que deve ocorrer já em 2020.

Diferença de coloração entre o suco de Magna e o suco de Isabel

A mudança do mercado de suco de uva pelo olhar dos produtores

Cooperativa São João

Um avanço na produção de uva para suco de cerca de 5% para quase 40%, em 10 anos. Esses são os números da Cooperativa São João, uma das mais tradicionais da região, de acordo com o agrônomo da vinícola, Paulo Tesser, que trabalha diretamente com os produtores, buscando qualificar a uva para suco de seus associados. Há 28 anos na cooperativa, ele é outro que observou de perto a transformação do setor. “Antigamente, não trabalhávamos quase com suco, mas nos últimos 10 anos principalmente o integral cresceu muito no mercado. Antes era mais suco concentrado para bebidas mistas, mas não para ser consumido como suco de uva”, destaca.

Segundo Tesser, a uva mais popular entre os produtores segue sendo a Isabel, no entanto, a aceitação pelas novas variedades tem sido positiva. “As novas variedades têm mais açúcar e o produtor consegue um preço melhor delas. Por isso, quase não se planta mais Isabel. O pessoal têm aceitado bem a mudança dela por novas uvas, seja em plantios novos ou renovação de vinhedos velhos”, opina.

Juliano Zottis, 34 anos

Terceira geração à frente do negócio da família, Juliano Zottis, que desde criança acompanhou o pai no campo, conta que a produção iniciada pelo avô foi se moldando com o passar dos tempos. Hoje, produz uvas de mesa para consumo, viníferas como Chardonnay, Cabernet e Alicante para vinhos finos, Moscato d’amburgo para vinho de mesa e, mais recentemente, tem investido nas variedades da Embrapa para suco.

Conforme conta, cerca de metade dos 7,5 hectares onde produz — sendo 2,5 próprios e o restante arrendados —, já se destina à uva para suco. “A maior produção sempre foi para vinho. De uns sete anos para cá começamos a investir no suco, e hoje já é meio a meio”, afirma.


Segundo o produtor, o investimento nas novas variedades se deu tanto por uma baixa na procura por uvas para vinho, quanto nas facilidades e vantagens observadas na produção de variedades para suco. “O mercado, no geral, travou as vendas de vinho. Houve um estoque muito grande e como começou a sobrar produto, o preço caiu, o que complicou a manutenção das uvas viníferas que têm um custo maior de manejo. Por outro lado, além de uma boa demanda, as variedades para suco se mostraram mais resistentes à doença, o que cortou custos com defensivos”, finaliza.

Fabiano Orsatto, 44 anos

Escondida em meio aos 5 hectares dos parreiras de Fabiano Orsatto, que serpenteiam às margens do Km 207 da BR 470, em São Valentin, uma parreira de Isabel com 120 anos é o símbolo máximo da mudança no mundo da uva na região. Introduzida no Rio Grande do Sul entre 1839 e 1842, por sua adaptação, a variedade cairia no gosto dos primeiros imigrantes italianos a colonizar a Serra Gaúcha, pouco tempo depois. Passada de geração em geração, a tradição da variedade se manteve ao ponto de seguir sendo a mais produzida em Bento Gonçalves e região. Com as recentes modificações no mercado, pouco a pouco, porém, ela começa a ceder espaço para novas variedades.


Produtor desde 2004, Orsatto conta que as terras antes ocupadas pelo avô e pelo pai eram voltadas à produção de viníferas, mas que hoje 100% de sua produção é voltada para suco. “Meu pai vinha com vinífera, entretanto começou a morrer e ele resolveu trocar tudo. Quando comecei, cheguei a ter um pedaço com Merlot, mas tirei e me dediquei só ao suco”, conta.


Segundo ele, seu carro-chefe é a Bordô. Pela posição solar propícia à variedade, seis dos 6,5 hectares que possui na Linha Veríssimo de Matos são ocupados por essa uva. Já na terra de São Valentim, a produção é mais diversificada, com a introdução de variedades como a Magna, a Carmem, e a Isabel Precoce. “Gosto da Bordô, pois ela não dá trabalho. Porém é bastante frágil, quebra com qualquer vento. Então as primeiras plantas, que têm 20 anos já, estamos substituindo pela Carmem que brota mais tarde, além de produzir muito: são 50 mil kg por hectare”, destaca.


Orsatto aponta que muito além da qualidade, o sucesso da troca da Isabel pelas novas variedades se contabiliza em lucro. “Essas novas uvas, com 15 graus, dá para ganhar de R$2,00 a R$2,10 pelo quilo; Isabel não tira mais de R$1,50. Sem contar que a Isabel precisa de até 20 tratamentos, enquanto as outras, com seis já dá para colher”, finaliza.

Bom também para a saúde

Em contraponto ao avanço de problemas de saúde relacionados a má alimentação, como a obesidade, diabetes, entre outros, segundo levantamento recente da Euromonitor, agência internacional de pesquisa de mercado, o brasileiro está cada vez mais consciente acerca da importância da reeducação alimentar. Com um crescimento de 12,3% ao ano, o Brasil já o quarto país do mundo em consumo de alimentos saudáveis.

Embora o dado possa, em parte, explicar o avanço do consumo do suco integral e também a importância da inclusão desse alimento na dieta, para a pesquisadora Caroline Dani o público, no geral, ainda carece de conhecimento para discernir as vantagens e diferenças de um suco integral para outro com aditivos. “Suco integral é um produto 100% uva que conserva, aroma, cor e sabor da fruta que lhe deu origem. O néctar tem só entre 30% e 50% de uva, o resto é água, conservante, corante e o açúcar, que é o grande vilão”, assinala.

Segundo ela, enquanto o consumo excessivo de concentrados, néctar e outros pode estar relacionado a problemas que vão da obesidade a doenças cardiometabólicas, as propriedades do suco integral podem colaborar para uma série de benefícios ao organismo. “Além de propriedade antioxidante, tem ação anti-inflamatória e ação cardioprotetora. Mais recentemente, foi comprovada, ainda, sua eficiência no fornecimento de energia para prática de exercícios físicos e até mesmo melhora de memória”, pontua.