Não lembro se já contei este fato. Como disse o Veríssimo, depois dos sessenta, tudo fica meio embolado. Enfim, se alguém já leu, vai ler de novo. Ou não.

Trata-se de minha larga experiência na cozinha, onde nunca tive muito sucesso. Não é tanto pela falta de “mão”, mas pela mania de não seguir a receita ao pé da letra. Toda vez que me proponho a fazer um prato mais requintado, fico tentada a pôr um pouco de criatividade, aumentando aqui, tirando ali, ou acrescentando outros ingredientes. Os que sentam à nossa mesa já sabem o que os espera, por isso sempre recomendam “vê se não inventa, tá?!”

Há um tempo atrás, decidida a quebrar o tabu, resolvi fazer uma sobremesa que, “de tão fácil nem tu erra”, segundo uma palpiteira de plantão. Era um creminho básico, depositado numa travessa caramelizada e coberto por um merengão. Depois, só pôr no forno para dar uma tostadinha, e estaria feito o manjar dos deuses.

Então descobri que o tal creme não era tão básico assim. Na verdade, exigia alguma perícia, aliás, mais do que eu desconfiava. Na primeira tentativa, o leite talhou. Na segunda, a mistura embolorou, com fiapos de ovos formando ranhuras. Usei o liquidificador para dar homogeneidade, mas aí o creme perdeu consistência. Na terceira tentativa, em outra panela, ficou um gosto de queimado. Inox é uma praga! Sem mais ingredientes, tive que recuperar a mistura mole, o da segunda tentativa, que ficara de lado para qualquer emergência. Pelo menos não cheirava à fumaça.

Na hora de caramelizar a travessa, tive a grande idéia de levar o garfo fumegante à boca. Ouviu-se um “tchiiii” de arrepiar os cabelos, ficando tatuada no lábio inferior a marca do tridente. Mas a obra foi realizada com sucesso.

Parti para a última etapa: bater os ovos em ponto de neve. Pensei em dispensar a batedeira só para não aumentar o caos da cozinha, mas não teve jeito. Aquilo não endurecia.

Minutos depois, a sobremesa ia ao forno. Enquanto o manjar ganhava uma cor dourada, eu botava ordem no recinto. De quando em quando, dava uma espiadinha básica, com todo o cuidado para o merengue não murchar.

Finalmente, o manjar dos deuses estava pronto. Uma belezura! Com o maior carinho do mundo, retirei a travessa do forno e coloquei-a sobre a pia, já limpa.

Sorria satisfeita para minha obra-prima, quando um claro e inequívoco “crek” abalou minhas frágeis convicções. No contato com a umidade, o pirex rachara ao meio, e rios de creme e espuma escorriam em direção ao ralo…