No dia 28 de setembro, na Avaliação Nacional de Vinhos, coordenada pela Associação Brasileira de Enologia – ABE, foi apresentado para quase mil pessoas, o melhor da safra de vinhos de 2019. Resultado dos avanços tecnológicos nos vinhedos e na tecnologia de elaboração, os 16 vinhos apresentados expressaram um ‘sentido do lugar’ – do nosso terroir – das regiões vitícolas do Brasil. Também, foi uma oportunidade para a percepção do efeito decorrente da safra, que faz com que cada ano tenhamos vinhos únicos, em sabor e tipicidade. Abaixo, é exemplificado o relacionamento que existe entre o clima, as diferentes safras vitícolas e os vinhos elaborados.

O volume de produção: a quantidade da safra de 2019 começou a ser definida na fase da diferenciação das gemas ocorrida em novembro/dezembro de 2017 ou seja, quase um ano e meio antes da colheita, dependendo da variedade. É este o momento da concepção dos cachos, quando a gema define se irá produzir um, dois ou três cachos, ou somente galhos, folhas e gavinhas. Dias ensolarados e de boas temperaturas favorecem a formação dos futuros cachos de uva, que ficarão aprisionados no interior das gemas no verão, outono e inverno subsequentes. No outono e inverno de 2018, as condições de frio, bem como a disponibilidade hídrica do final de inverno, determinaram o percentual de brotação das gemas, definindo o potencial número de flores e cachos. Quanto mais frio e regular o frio de inverno melhor será a uniformidade e eficiência de brotação. Também, no final do inverno e início de primavera, as intempéries (geadas, granizos ou fortes ventos), a disponibilidade de água, a umidade e o calor, influenciam a taxa de sucesso da fecundação das flores, redundando no potencial da produção da safra. O ideal é uma primavera com predominância de dias ensolarados, sem excesso de chuvas, que evite as doenças fúngicas que ocorrem nos cachos e nas folhas, principalmente o míldio. No verão, por sua vez, a disponibilidade de água das chuvas determina a absorção de água pelas plantas, influenciando diretamente o peso e tamanho das bagas, dos cachos e do volume total de produção.

A qualidade das uvas: a quantidade e características da cor, dos aromas e sabores dos vinhos dependem do grau de maturação das uvas, bem como da ausência de podridões. Estes elementos são fortemente influenciados pelas condições meteorológicas do terço final de desenvolvimento dos frutos, após a mudança de cor ou do amolecimento ocorre de diferentes formas – dentro desse ‘microscópico laboratório de síntese orgânica’ que se torna a baga da uva. Para um mesmo grau de maturação, por exemplo, pode-se ter a produção de substâncias modificadas pelo efeito das temperaturas, exposição solar nos cachos e folhas, ou por excessos ou falta de chuvas. Como exemplo, uvas maduras de Chardonnay podem ter uma maior concentração de ácido málico quando as noites são mais frias (por sofrer menor degradação metabólica) do que uvas Chardonnay, de mesma maturação, que amadureceram em noites mais quentes, as quais se submetem a uma maior combustão metabólica. Por outro lado, uvas de Cabernet Sauvignon quando amadurecem em condições de clima quente, particularmente de noites quentes, apresentam uma menor produção de pigmentos nas cascas e, simultaneamente, maior taxa de degradação de antocianinas, originando uvas e vinhos tintos de menor coloração. A disponibilidade de água, os dias de sol, a umidade do ar são outros fatores importantes. Se chove demais, com muitos dias nublados e quentes, as uvas começam a apodrecer e o viticultor obriga-se a antecipar a colheita, tendo-se uvas menos maduras, menos doces, mais ácidas e mais diluídas em cor e sabores. Se, por outro lado, o verão é mais seco, com dias ensolarados, as uvas podem atingir um grau mais alto de maturação; no caso das uvas tintas, alcançam um maior teor de açúcar, maior concentração de pigmentos, taninos mais macios e maior concentração de sabores.

A tecnologia da fermentação e elaboração: os enólogos, em cada safra, têm que encontrar diferentes estratégias e procedimentos para as variedades e composições de uvas, podendo atenuar limitações da matéria prima, bem como acentuar as qualidades encontradas. Os protocolos de elaboração servem apenas de orientação, mas cada uva requer procedimentos tecnológicos únicos. Se as uvas carecem de cor prolonga-se o tempo de maceração ou se usa novas tecnologias, como a extração com calor (termovinificação), elaborando-se vinhos jovens, frutados, para consumo mais rápido. Se as uvas são bastante doces e concentradas, pode-se promover uma maior extração dos elementos da casca e semente, deixar mais tempo em barricas, para fazer vinhos encorpados, de maior volume de sabor e de longa guarda. Se as uvas de Pinot Noir não alcançaram alto teor de açúcares e estão mais ácidas, com menos cor, pode-se elaborar um vinho sem a participação dos constituintes da casca, um vinho branco, de maior acidez que, no final, poderá originar um elegante espumante branco de uva tinta, que os franceses chamam de Blanc de Noir. Além disso, os enólogos, adiante, podem misturar vinhos, de forma a alcançar estilos específicos das marcas; vinhos de uvas tintóreas como Alicante Bouschet ou Tannat, por exemplo, são comumente empregados para aumentar a cor e a estrutura de vinhos tintos de Merlot ou Cabernet Franc. Essas misturas, que servem de base para a construção sensorial da bebida e melhorar os produtos, também são feitas em vinhos base espumantes, quando são chamadas de cuvée (francês).

Enfim, nesta conjunção de flutuação anual do clima e das uvas são definidas as cores, os aromas e os sabores dos vinhos de cada ano. Isto descreve um pouco dessa ciência e arte secular de elaborar vinhos.

Mauro Celso Zanus
Eng. Agrônomo – Embrapa Uva e Vinho