Quer você acredite ou não, ontem fui premiado, mas não foi na Mega-Sena.

Deixe-me contar a você como foi para servir de protesto contra a situação da grande maioria dos parques e calçadas da cidade.

Vinha desanimado pela calçada com uma caixa de chocolate se desintegrando debaixo do braço, ora metendo a cara nas frestas das grades das casas para oferecer meu produto, ora tentando pegar carona nos carros que passavam e sumiam em uma das esquinas logo adiante.

De vez em quando, punha os olhos nas garotas estonteantes com as roupas pegadas a seus corpos, que empreendiam suas habituais caminhadas diárias.

O fato é que outras pessoas passaram por aquela coisa antes e lograram melhor sorte. Quase lhe tiraram lascas, mas ela permaneceu intacta. O menino que fazia manobras das mais variadas e impossíveis com sua bicicleta, driblou-a sem problemas. Até mesmo um velhinho, cuja bengala parecia caligrafar as pedras da calçada, saiu-se ileso ao cruzar pela monstruosidade.

A desgraça, portanto, deu-se comigo, como o personagem azarado do conto de Machado de Assis que, embalando-se na rede caiu de costas no chão e quebrou o nariz, porque um toco de telha, mal seguro, desprendeu-se do telhado e caiu também.

Entre muitos, pois, fui eu quem pisou sobre a maldita coisa. Dizer que apenas pisei é tentar amenizar a tragédia.

Enterrei o pé até o tornozelo naquilo. Um mergulho cego.

E se disser que eu não calçava meu velho Kichute, mas um chinelo de tiras, não me há de crer. O pé simplesmente afundou, como um barco avariado, no meio daquela imundície fabricada por um cachorro. Não era coisa pequena não, era quase um Everest. Realizei ao contrário a locução proverbial “Quem quer a desgraça, vai à montanha” (ou ao santo que resulta no mesmo).

Parece que o autor da façanha firmou o testamento da sua fortuna ingerida dias antes, bem rente à grade por onde me esgueirava. Deixou a fortuna toda para mim, o único herdeiro. O monstro não foi alimentado com ração para produzir aquilo. Ali, tinha uma mistura homogênea de feijão e arroz, massa, carne ao molho, batata e outras sobras do almoço.

Atordoado, rezei um monte de nomes feios.

– Fedorento de uma figa… Filho de uma cadela… Palermão… Monte de estrume…

Atirei o chinelo emporcalhado no coletor de lixo. RESMUNGUEI mais um rosário de blasfêmias, vasculhei à minha volta se não havia alguém a mofar de rir de meu azar, e joguei no lixo também o chinelo limpo. Poupei a caixa de mandolates que começava a se desintegrar com o calor debaixo do braço.

Gastei a sola do pé, lixando-a até não poder mais no cordão da calçada.

Em seguida, voltei para casa descalço, com os punhos cerrados, pronto para pular em cima do primeiro cachorro que encontrasse e esbravejar:

– Suma da minha frente!

Creio que você deve ter desatado a rir com isso tudo. Só não me peça para fazer o mesmo, porque uma lágrima desce-me pelo nariz e boca e divide ao meio o meu sorriso.

Durante um bom tempo esse cheiro de cocô de cachorro ficou impregnado na minha alma.

 

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