O casal veio de Mato Grosso, trazido por alguém que pretendia povoar acres de terra no alto de um monte com o seu canto. Mas, como é de se imaginar (seriemas adultas não são domesticáveis) elas não respeitaram os limites do território. Com a velocidade que Deus lhe deu e acostumadas com a liberdade do cerrado, percorreram grandes distâncias, camuflando-se entre as árvores, com sua plumagem cinza-amarelada.

No mês que passou, escalando um terreno menos acidentado, elas se aproximaram demais de um humano que, com sua sensibilidade paquidérmica, resolveu caçá-las, só para ver de perto que bichos eram. Um dos tiros pintou a terra de vermelho.

A que escapou da morte traiçoeira desceu o morro e buscou refúgio nos arredores de uma casa abandonada, sem cães, gatos, ou qualquer outro ser que não fosse alado. E lá solta sua voz…

A manhã inteira é preenchida pelas notas mais tristes que qualquer habitante das redondezas já escutou. Na parte da tarde, a melodia parece uma mixagem, sugerindo melancolia e raiva a um só tempo. É o que dizem…

Ainda não conheci a seriema solitária. Sei que tem gambitos e bico vermelhos, cauda longa e um penacho entre os olhos e que é muito rápida. Ao menor sinal de aproximação humana, ela desata numa louca corrida em direção ao arroio.

Assim que puder, irei encontrar nossa locatária. E aproveitarei para saudar os fantasmas que habitam a velha casa da minha infância…

Através das lentes

No princípio, o mundo era disforme. Então o homem criou as lentes, e o míope pôde ver. Mas as lentes não tinham hastes, ajustando-se apenas sobre o nariz. Aí o homem disse: “Que se façam as pernas!” E as “pernas” foram feitas. Assim os óculos percorreram os continentes e se popularizaram, perdendo a marca de distinção social e intelectual. Do antigo pince-nez ficaram só as lembranças… e velhos retratos, como o de Machado de Assis.

De lá para cá, os óculos ganharam várias versões, tamanhos e cores, de acordo com as tendências de cada época, fazendo a alegria de velhos, jovens e crianças que viam o mundo totalmente embaçado.

Mas, dizem que foi por causa da vista embaçada de Monet e Renoir que o Impressionismo nasceu, pois eles teriam pintado a natureza daquela forma borrada e sem detalhes por causa de um problema de visão, e não como resultado de uma interpretação particular.

Verdade ou mentira? Pelo sim, pelo não, a arte agradece pelo advento tardio das lentes.