Reportagem especial do Semanário traz um trabalho voltado para a recriação de cenários da Capital Nacional do Vinho
Fotos antigas: Arquivo Histórico – Memórias de Bento Gonçalves
Fotos atuais, trabalho de recriação e reportagem: Augusto Arcari, com participação da Doutora em Planejamento Urbano e Regional Terezinha de Oliveira Buchebuan
Bento Gonçalves, que recentemente completou 134 anos de emancipação, é um município que passou por inúmeras transformações em seus espaços urbanos. Os morros, antes vazios, foram tomados por construções verticais, transformando a Capital Nacional do Vinho em um grande centro urbano, e consequentemente na 16º cidade mais populosa do Rio Grande do Sul.
As raízes da arquitetura da Serra Gaúcha, estão na imigração italiana, conforme aponta a professora da Universidade de Caxias do Sul (UCS) Terezinha de Oliveira Buchebuan, Doutora em Planejamento Urbano e Regional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). “Não podemos perder essa referência, temos na Serra Gaúcha uma arquitetura da imigração italiana e não uma arquitetura italiana, ou seja, há influência cultural nas nossas cidades e modos de vida pelos imigrantes italianos. No entanto, é uma cultura arquitetônica e de ocupação do território formada aqui, a partir das condições geográficas, das técnicas construtivas e da materialidade que o local dispunha à época da colonização”, destaca.


A Igreja Matriz de Santo Antônio, no Centro, que teve sua estrutura concluída em 1894, mantém-se conservada, junto da torre, construída em 1933. É um dos legados deixados pela imigração italiana em Bento, já que, Santo Antônio, teve sua primeira missa celebrada na região em 1876, pelo Padre Bartholomeu Tiecher, o 1º sacerdote dos imigrantes italianos do Rio Grande do Sul
Ela também explica como a cultura de cada região da Itália influenciou na formação da Serra. “Há especificidades entre as cidades, dada a origem e os saberes dos grupos de imigrantes que se estabeleceram em cada uma delas (Vêneto, Friuli, Emilia Romagna, Milão, etc.). Por exemplo, Bento Gonçalves tem um número de edificações em alvenaria de pedra bastante expressivo, ao passo que em Antônio Prado temos edificações em alvenaria de tijolos mais antigas e, posteriormente vieram as de madeira, que remetem a volumetria e forma das anteriores”, detalha.
Terezinha também pontua outros aspectos cruciais para a compreensão desta formação cultural. “Certamente as referências formais, funcionais e construtivas vêm das regiões de origem na Itália, pois temos algumas reproduções por aqui, como por exemplo o Campanário de Santa Tereza. Porém, cada caso precisa ser analisado individualmente, dada a complexidade desta trama cultural. Pois os imigrantes sequer se reconheciam como italianos, mas sim a partir de suas regiões de origem”, finaliza.


A Igreja Metodista, no Centro, é mais um dos legados deixados pela imigração italiana em Bento. Foi inaugurada em 1889, sendo o templo metodista mais antigo do estado. O trabalho metodista em Bento iniciou-se a partir de 1887, pelas famílias Baccin, Goron, Marcon e Busnelio. Esses que conservavam a fé que tinham na Itália, onde frequentavam a Igreja Valdense.
A arquitetura da imigração italiana
De acordo com Terezinha, os imigrantes se identificavam com suas regiões de origem, pois nos séculos 18 e 19, a Europa presenciava o processo de construção de nações, a partir de elementos estruturadores, entre eles: língua, bandeira, heróis nacionais, paisagens e monumentos. A docente explica a perspectiva desta formação. “Várias áreas do conhecimento têm discutido sobre os objetos produzidos ou inventados pela memória coletiva, os “objetos do patrimônio”. Ao longo da história, o urbanismo e a arquitetura, foram utilizados para traduzir no espaço algumas ideologias políticas, religiosas e raciais. Deste modo, o patrimônio arquitetônico e urbano se torna também uma concretização do discurso de construção da identidade e Isso pode acontecer em regiões e não somente em países”, ratifica.


Ela ainda reforça que. “A construção da identidade, seja nacional ou cultural, frequentemente utiliza referências espaciais como cidades míticas, estilos arquitetônicos e técnicas construtivas. Na Serra Gaúcha, o patrimônio arquitetônico, tanto rural quanto urbano, é uma marca importante da italianità, associada à imigração italiana”, ressalta. Ela ainda afirma a importância em reconhecer que povos originários já estavam aqui antes dos italianos. Além dos portugueses, vinculados às atividades administrativas e demarcação dos lotes coloniais; descendentes de escravizados e outros imigrantes europeus, como os suíços, poloneses e franceses, embora em menor número. “Eles também contribuíram para a formação da região. Embora a identidade da italianità prevaleça, outras estão presentes e contribuíram para o crescimento da Serra Gaúcha e ainda há muito que se estudar sobre elas, para também valorizá-las na complexidade que nos constitui enquanto grupo social”, pontua.
Terezinha conclui abordando as transformações nas casas. “No início, os imigrantes construíram abrigos simples, que evoluíram para estruturas maiores, simbolizando seu progresso e sucesso. Estas substituições das “casas velhas” tornaram-se comuns ao longo do tempo, uma das marcas dos colonos que chegaram aqui, dominaram a natureza e venceram”, ressalta.


Urbanização da Serra Gaúcha
Bento Gonçalves e Caxias do Sul, duas cidades que foram epicentros da imigração italiana, iniciada em 1875, hoje, são os dois municípios mais populosos da região da Serra Gaúcha. A docente destaca pontos que impulsionaram essa urbanização, levando pequenas colônias, inicialmente compostas por alguns milhares de habitantes, a locais com uma população composta por centenas de milhares de habitantes. “Ela tem relação com a industrialização e o êxodo rural ou migrações de cidades menores, para suprir de mão de obra essa atividade econômica. As cidades não estão preparadas para receber tamanha quantidade de pessoas em busca de melhores condições de vida”, destaca.
Ela também enfatiza as dificuldades enfrentadas em meio a esse êxodo. “Muitos não conseguiram colocação nos postos de trabalho. Além disso, não tinham condições econômicas de adquirir um pedaço de terra e construir uma casa, o que os leva a viver em condições precárias. Isso aconteceu praticamente em todos os países ou cidades que passaram pelo processo de industrialização, na Europa, no Brasil e, particularmente em Caxias do Sul, levou a população mais pobre a residir em ocupações ou periferias distantes da área central”, diz.


A vista da cidade. Observada no sentido Juventude-Centro, com o bairro São Francisco ao fundo, e mais de 100 anos de diferença entre as imagens. Percebe-se como a urbanização tomou conta da paisagem
“Verticalização das cidades”
Bento Gonçalves, nos primeiros anos de emancipação, era uma cidade com um cenário resumido a morros, e com construções, em sua maioria, limitadas a pequenas estruturas de madeiras. Hoje, é um município com mais de 120 mil habitantes, repleta de prédios e construções de grande porte. Terezinha também aborda os desafios enfrentados para a manutenção da cultura local em meio a essa transformação. “Não é ‘verticalização’ em si que “atrapalha” a preservação, mas sim a visão de progresso e modernidade que ela simboliza. Este ideário associa construções arrojadas de vidro, concreto e aço ao abandono do “atraso”, desvalorizando as antigas casas de madeira ou pedra, que são trocadas por prédios e condomínios em áreas urbanas tradicionais. Embora a cultura regional seja amplamente promovida como um atrativo, muitas vezes isso só acontece quando os elementos antigos não interferem no desenvolvimento urbano ou permanecem restritos a áreas rurais e rotas turísticas”, reflete.
Ela também detalha o papel da especulação exacerbada neste processo. “O mercado imobiliário, aliado em alguns casos ao poder estatal, vem substituindo gradativamente construções históricas, muitas vezes sem que haja órgãos ou conselhos de proteção patrimonial efetivos ou respeitados. A falta de organização da sociedade civil e de consciência coletiva agrava esse cenário, contribuindo para a perda de elementos arquitetônicos e urbanísticos com valor histórico, o que enfraquece a identidade e desvaloriza a cultura local”, lamenta.




A antiga casa do Dr. Bartholomeu Tacchini, é uma das construções históricas de Bento Gonçalves que não sobreviveu ao tempo. Foi projetada por Alessandro Galucci e concluída em 1927. Na década de 1930, com o falecimento do doutor, passou a ser o o Solar dos Mônacos. Atualmente, abriga a Galeria Solar.
Apesar disso, Terezinha destaca avanços para a preservação patrimonial na Serra Gaúcha, citando como exemplos o tombamento nacional dos conjuntos históricos de Antônio Prado e Santa Tereza pelo IPHAN. Em Bento Gonçalves, de acordo com o plano diretor do município, estão incluídos como bens edificados patrimônios culturais, históricos, arquitetônicos ou paisagísticos, urbanos e rurais. Entre eles estão bens tombados pelo IPHAN e IPHAE, edificações com mais de 50 anos, áreas protegidas, construções rurais em roteiros turísticos e paisagens culturais, como parreirais e áreas próximas à ferrovia, simbolizando uma preocupação com a manutenção da identidade coletiva representada, dentre outros elementos, pela arquitetura e pela paisagem.




O prédio da prefeitura, na Praça Via del Vino, no Centro, é um dos patrimônios históricos de Bento Gonçalves. Foi inaugurado em 20 de setembro de 1902. Na época de sua construção, Bento estava nas mãos do coronelismo, que era a estrutura de governo dominante durante a fase da República Velha, o Coronel Antônio Marques de Carvalho Júnior já estava no poder há mais de uma década na Capital Nacional do Vinho. O Município ainda não tinha porte, e o governo estadual enviou arquitetos para projetar o prédio que viria a sediar o governo municipal. Os mesmos artistas que em 1898 planejaram a construção da Prefeitura de Porto Alegre. Ao longo da história, a “Casa Amarela”, além de sede do Poder Executivo municipal, foi usada como Intendência, presídio, guarda municipal, sala do Poder Judiciário e Colégio Elementar.


A paisagem ferroviária, também considerada um patrimônio histórico do munícipio, é uma das peças fundamentais na história da cidade. A ferrovia central de Bento Gonçalves começou a ser construída em 1909 e terminou em 1919.


Outras localidades, apesar de não serem tombadas, desempenham um papel crucial para a história, cultura e formação do munícipio.


A Pipa Pórtico, principal cartão-postal de Bento Gonçalves, representa as “pipas” de madeira, responsáveis por armazenarem o vinho, um dos símbolos da cidade. Por não preencher alguns critérios, como os 50 anos de existência, não é tombada como patrimônio histórico do munícipio. Em 2025, será o cinquentenário da primeira versão do monumento, construída em 1975, com uma base de madeira. Esta versão inicial, acabou sendo destruída por um vendaval na década de 80. Em 1985, foi reconstruída com a estrutura de concreto, como conhecemos hoje. Terezinha destaca os aprimoramentos que foram feitos nos arredores do pórtico, como a instalação de calçadas para os pedestres, o piso-tátil e as revitalizações paisagísticas, assim, qualificando o ambiente urbano.




Projeção da Igreja Cristo Rei, feita em 1949. Em 1954, o templo foi oficialmente inaugurado


O Parque Esportivo Montanha dos Vinhedos, no bairro São João, é a casa do único time profissional de futebol em Bento, o Esportivo. O estádio teve suas construções iniciadas nos anos 80. Na década seguinte, as obras ficaram estagnadas, até que em 2001, empresários da cidade retomaram a ideia e deram continuidade à conclusão. Em 29 de fevereiro de 2004, o estádio foi inaugurado.


A Praça Ismar Scussel, no bairro Planalto, abriga dois importantes centros culturais da cidade: A Casa das Artes, na primeira imagem ainda em construção; e o Museu do Imigrante, criado em 18 de dezembro de 1974 por decreto do então prefeito Darcy Pozza, e inaugurado em 21 de maio de 1975, como uma celebração ao centenário da imigração italiana.
Imagens recriadas: Augusto Arcari