Já contei este fato real, mas tenho a certeza de que a maioria dos leitores não lembra mais. Afinal, até eu o tinha esquecido lá no fundão da memória, e ele só veio à tona por causa da pandemia, que me obrigou a desligar o piloto automático e buscar alternativas para o recolhimento. Assim, remexendo no passado, encontrei alguns textos que merecem uma segunda chance.

O fato se passou há algumas décadas, em uma escolinha do interior cercada de parreirais, onde duas torres gêmeas que não fazem parte de um complexo empresarial, mas de uma casa espiritual, nunca foram bombardeadas.  

Nosso personagem, um tiquinho de gente de meio metro de altura, ficava dependurado na cadeira balançando as pernas, sem conseguir tocar o chão. Possivelmente enfiado na escola antes do tempo, era imaturo para entender o processo abstrato do “b a bá”, restando-lhe a alternativa de viajar pelo mundo da lua enquanto os coleguinhas participavam ativamente.

No dia deste episódio, a professora estava introduzindo uma grande dificuldade: o “lh”. Para que todos participassem, ela havia promovido um “temporal de palavras”, uma espécie de brainstorming, com “ventos”, “raios” e tudo o que se pode imaginar numa sala cheia de energia infantil.

A exigência era que cada criança dissesse uma palavrinha com o dígrafo. E parecia que tudo o que existia no mundo próximo já havia sido citado: milho, ovelha, coelho, orelha, galho, agulha… E o menininho, aflito. Foi aí que o lado materno da professora pintou mais alto. Ela não podia deixar que o garoto fosse discriminado pela turma, que já pegava no seu pé por causa do tamanho. Por isso precisava maquinar algo que o fizesse dizer uma mísera palavrinha sem que os demais percebessem.  Tentou fazer mímica bem na frente dele, mas a carinha do pequeno virara um imenso ponto de interrogação. A mestra não se deu por vencida. Postou o cotovelo na classe do aluno aproximando bem seu rosto e começou a abrir e fechar compulsivamente as pálpebras. A palavra sugerida era “olhos”. O loirinho arregalou mais ainda as bolitas azuis e, de repente, teve um insight. Ergueu o braço. A turma fez silêncio. Expectativa no ar. E ele, então, feliz da vida, exclamou:

-Rugas!

Desconfio que nosso menininho é hoje um grande cirurgião plástico.