Clacir Rasador

Quando a ordem natural da vida é invertida, ou seja, os filhos se vão antes que seus pais, nos deparamos com uma absurda realidade sem respostas, a partir do que ouso concluir que a vida não tem lógica, mas, infelizmente, a morte, na grande maioria das vezes, sim, embora sorrateira e silenciosa.

Talvez seja por isso que, quando a morte, mais que lógica, se transforma em vida, chamamos de… MILAGRE.
Acompanhei nos últimos dias o julgamento dos quatro acusados da tragédia na boate KISS.

Sem qualquer pretensão de adentrar nos detalhes do maior júri popular da história do RS, porém, o sucedâneo de fatos que antecederam a morte de 242 pessoas parece a personificação daquela velha história dos quatro personagens, coincidentemente o mesmo número de réus deste julgamento: TODO MUNDO, ALGUÉM, QUALQUER UM e NINGUÉM.

“Havia um trabalho importante a ser feito e TODO MUNDO tinha certeza de que ALGUÉM o faria; QUALQUER UM poderia tê-lo feito, mas NINGUÉM o fez; ALGUÉM se zangou porque era um trabalho de TODO MUNDO; TODO MUNDO pensou que QUALQUER UM poderia fazê-lo, mas NINGUÉM imaginou que TODO MUNDO deixasse de fazê-lo; Ao final, TODO MUNDO culpou ALGUÉM quando NINGUÉM fez o que QUALQUER UM poderia ter feito.”

No decorrer do processo penal e, igualmente, no julgamento transmitido ao vivo para a sociedade, o jogo de empurra-empurra quanto à responsabilidade pelo crime, seja entre os acusados e inclusive de algumas testemunhas, cuja espada da Justiça lhes tirou um fino e por pouco não vieram a sentar no banco dos réus – a exemplo de certas autoridades municipais e comando dos Bombeiros – todos, sem exceção, em matéria de defesa, se viam fora de uma cena de crime. Infelizmente, tal comportamento dos réus se repetia quando do acontecimento, ou seja, ao final, de fato, somente restaram as vítimas, como se fossem elas as culpadas por estar em local errado e na hora errada.

Esta tragédia, por óbvio, abriu muitos vazios nas famílias enlutadas e outros vazios foram descobertos pela sociedade como um todo.

Descobriu-se um grande vazio demonstrado pela ineficiência do Estado e do município em razão da demora em fiscalizar a boate por falta de efetivo.

Descobriu-se um grande vazio na legislação até então existente, em especial relacionada à segurança para eventos acima de 100 pessoas.

Descobriu-se um grande vazio na efetiva JUSTIÇA, mais especificamente, de 09 anos, e seguem recursos…

Por outro lado, mesmo diante de situações tão negativamente impactantes, talvez por uma questão psíquica, dada a necessidade de seguimos em frente, temos a mania de contemporizar, utilizando-nos até mesmo de ditos populares, a exemplo do “precisa acontecer algo desse tamanho para aprender, para que se faça alguma coisa”.

Pergunto: Será que precisa?

E sendo duramente preciso, de fato, aprendemos algo?

Quanto à lei, há de se dizer que sim, pois a legislação pertinente à prevenção de incêndios e desastres mudou, ficou conhecida como a Lei Boate Kiss (Lei 13.425, de 2017) e, segundo especialistas, é hoje mais rígida daquela existente à época da tragédia.

Mas, isso basta?

Esta pergunta passa pela prova da história dos personagens: TODO MUNDO, ALGUÉM, QUALQUER UM e NINGUÉM, pois deixar acontecer “naturalmente” sem que haja sujeitos definidos e suas respectivas responsabilidades, se revela uma verdadeira cilada e cenário perfeito para novas tragédias.

Esta mesma pergunta passa pela eficiência do Poder Público em fiscalizar, prevenir, evitar, responsabilizar e igualmente se responsabilizar, na medida em que não dá resposta em prazo hábil para a sociedade, pois a boate Kiss aguardava a vistoria de incêndio já há algum tempo, segundo consta, falta de pessoal.

Enfim, não basta o argumento de defesa de que não se KISS a morte, é preciso fazer acontecer a VIDA.