Quando deixei para trás as raízes, fincadas numa terra de muitas possibilidades, especialmente de enchentes, fiquei aliviada em adotar esta cidade – ou ser adotada por ela – porque me garantiram que, nestas ruas, só jorraria vinho. E foi assim. Até a semana passada…

Tudo começou no fim da tarde, com uma nuvenzinha de nada que foi engolindo outras nuvens e engrossando de tal maneira que parecia despencar de lá de cima. De repente, um Z com “zilhões” de volts riscou o céu. Usando meus conhecimentos de física, contei os segundos e os multipliquei por 300, para ver a que distância tinha caído o raio. Muuuito perto. “Ora de picar a mula”, pensei, “mas não sem antes de passar no mercadinho, cujo pão d’água é uma delícia”.

Ia saindo com o saquinho de pão, necessário, e mais meia dúzia de sacolas com produtos de necessidade duvidosa, quando, de repente, a tal nuvem gorda explodiu no solo. Foi um “chuááá” de dar gosto de ver. Como o décimo guarda-chuva do ano ficara no carro, não tive outra alternativa senão esperar o aguaceiro amenizar. Mas aí, o caos se anunciou: a cada quinze segundos, aumentava o nível da água na rua. Eu olhava para as ondas que lambiam o meio-fio da calçada, num misto de fascínio e horror. Quando dei por mim, a inundação se instalara.
O mercado precisou fechar as portas para impedir a invasão da água. Saída pelos fundos não havia. Então, eu e mais alguns desavisados ficamos observando, pela porta de vidro, a revolta da natureza e, no meu caso, revendo a infância, através de imagens memoriais do rio Taquari em época de cheias, quando rugia encosta abaixo.
Felizmente, não demorou para que as bocas de lobo voltassem a deglutir H2O misturado a lixo urbano. Não tive dúvidas: era a chance de escapar.

Com sacolas nas mãos e chuva no lombo, cheguei até meu meio de transporte a uma quadra adiante… ou atrás, dependendo do ponto de vista. Mas… “cadê a chave?”, pensei alto. “Cadê essa maldita chave?”, repeti. Um outro desafortunado, estranhamente tranqüilo, aproveitou para sugerir:
-Liga pra teu marido trazer a chave reserva…
Como não tinha pensado nisso? Se bem que…
-Impossível! Deixei dentro do porta-luvas, para alguma emergência… A chave. Não o marido – expliquei.
O cara não entendeu. Ou não tinha senso de humor.
Bom, fazer o quê! Me rendi à situação e chamei os homens da casa.
O carro? Ficou lá, intacto, até o dia seguinte…