Às vezes, gosto de pensar que não há nada com que me preocupar na vida. É um faz-de-contas que me faz bem. Experimente você também, é muito mais fácil do que bater palmas com uma mão só.

Gosto de pensar que a vida me privilegiou com os melhores atributos: beleza e um sorriso permanente apoiado nos corrimões dos lábios; simpatia e inteligência para cativar novos e grandes amigos; elegância e boas maneiras no convívio social.

Acima de tudo, gosto de imaginar que a vida fez-me um vagabundo que trabalha muito e que tem um talento nato para tirar a água suja das palavras para depois estendê-las no arame de esticar conhecimentos.

Gosto de pensar que estou pulando da cama, enfiando meu corpo em uma roupa amarrotada, espreguiçando-me, três ou quatro vezes e lavando o rosto com as pontas dos dedos.
Gosto de pensar que estou tomando calmamente o café da manhã, enquanto, lá fora, os passarinhos franzem a textura das horas com seus trinados, com o sol declarando guerra à manteiga que escorre mansamente da forma e se deposita sobre a velha toalha de mesa meio esgarçada.

Gosto de pensar que estou de pé no alto de uma duna de areia, segurando meu filho pela mão e ensinando-o a ver a imensidão do mar. Também imagino-me na paciente e feliz operação de enterrá-lo na areia até o pescoço; um precioso passatempo praticado sempre que tivesse vontade e não apenas uma vez por ano com as ondas trazendo à tona nadadeiras de borracha e mau-humor.

Gosto de pensar que a sorte me está sendo generosa e que as hortaliças estão crescendo viçosas sem regar.
Gosto de pensar que todos os motoristas são educados e que descem de seus carros para pedir mil desculpas sempre que prejudicam o outro.
Gosto de pensar que as famílias, dentro de seus lares, gastam o tempo construindo diálogos prazerosos.
Gosto de pensar nos pequeninos nadas de carícias e olhares trocados com minha esposa, nas tardes chuvosas de domingo, em que na realidade todo mundo fica irritadiço.
Gosto de pensar que o destino está me favorecendo e que o êxito é meu grande companheiro. Tenho cavalos manga larga, carros esporte, polpuda conta bancária, a brisa das montanhas, as águas dos rios investindo contra as gargantas de pedra.

Gosto de pensar no doce de leite raspado do fundo da panela, nas maçãs madurando no ninho em meio ao monte de feno e no cheiro das uvas concentrando-se à açúcares madurando no parreiral que me transportam de volta a minha infância.

Gosto de pensar que minha fé em Deus é inabalável diante de tudo e de todos. Eu estou com Ele que me protege, me ajuda, me ilumina e me abençoa as horas todas do dia, os dias todos do ano.

Gosto de acreditar que nunca duvido da ubiquidade do Senhor, nem mesmo diante de uma miserável dor de barriga ou de um ataque impiedoso dos vírus da gripe. Gosto de pensar que não tenho motivos para lamentar as desgraças padecidas, como o cálculo renal que meus rins aprisionaram por mais de um ano ocasionando-me dores insuportáveis e a hepatite adquirida por erro médico e que quase me levou à nocaute. Gosto de pensar que minha força assombrosa escuda-me contra as perdas de pessoas queridas que carrego no lado esquerdo do peito.

Gosto de pensar que os terríveis acometimentos de medo e pânico, sem nenhuma razão aparente, foram apenas pesadelos de uma outra vida.

Custa pouco ou quase nada esquecer as preocupações de vez em quando. Não custa nada tentar, nem que seja uma vez apenas na vida.