Mesmo após 242 pessoas, na sua grande maioria jovens, perderem a vida no incêndio de uma boate, comovendo todo o país, aprovação da Lei Kiss, em 2017, ainda deixa dúvidas. A burocracia aumentou, inúmeros projetos precisam ser adaptados, e proprietários esbarram no custo dos profissionais e das alterações necessárias

A madrugada de 27 de janeiro de 2013 ficará marcada para sempre na história de um país que se comoveu com o incêndio que ceifou a vida de 242 pessoas em Santa Maria. A fatalidade levou o Governo Federal a criar a Lei 13.425, que foi sancionada em 30 de abril de 2017. No mês de dezembro de 2019, o Governador do Estado, Eduardo Leite, prorrogou em mais quatro anos o prazo para as empresas se adaptarem.

Conforme o comandante do Corpo de Bombeiros Militar de Bento Gonçalves, major Márcio Batista, as normas estabelecidas buscam, sobretudo, a proteção dos ocupantes das edificações. “Não há dúvida da importância dos sistemas para a segurança dos estabelecimentos. Ela está comprovada, portanto, os mesmos devem se adequar à legislação. O novo decreto (nº 54.942 de 22 de dezembro de 2019) ampliou o prazo para que os estabelecimentos se regularizem, no entanto, em nenhum momento estabeleceu a isenção das adequações”, alega.

A principal inovação da lei 14.376/2013 foi a tríplice responsabilidade quanto à prevenção e proteção contra incêndios e pânico: a do Corpo de Bombeiros, a do responsável técnico e a do proprietário.

Ao Corpo de Bombeiros cabe conferir as exigências legais e normativas para a aprovação, além das devidas fiscalizações. O responsável técnico deve se ater aos laudos e declarações assinadas no projeto e execução. Já ao proprietário ou responsável pelo uso da edificação fica a incumbência pela utilização e manutenção, de acordo com o que foi aprovado no momento da vistoria. “A limitação da população, por exemplo, deve ser observada pelo proprietário, e este responde pelos danos decorrentes ao uso em desacordo com o que foi aprovado no Plano de Prevenção Contra Incêndio (PPCI). Quando é estabelecida a limitação, também é apresentada a forma que se fará o controle deste público. A constatação da irregularidade durante vistorias extraordinárias pode gerar multa ao proprietário, podendo ser cassado o alvará”, afirma Batista.

O comandante pondera ainda que o ideal é que todos os proprietários dos estabelecimentos e responsáveis pelas edificações vejam a segurança como prioridade e tenham os equipamentos de segurança como investimento e não como despesa, dando a devida importância e demonstrando preocupação com a segurança de seus clientes, funcionários e demais ocupantes das estruturas. “Esta é a nossa visão. Independentemente de prazos, o necessário é o desenvolvimento de uma conscientização prevencionista, não arriscar que ocorra uma nova tragédia para se impor uma medida preventiva. A instalação dos sistemas de prevenção não deve ser apenas por ser uma exigência legal, mas como forma de compreender que as mesmas são necessárias para sua própria proteção. Infelizmente, não chegamos neste nível de conscientização social e muitas vezes é necessária a imposição de penalidades para se cumprir as normas de proteção, as quais visam minimizar os danos decorrentes dos sinistros”, aponta.

Batista lembra também que o novo Decreto estabeleceu prazos gradativos para cada etapa do processo de regularização para os estabelecimentos que ainda não se regularizaram. “No final de cada um dos prazos, deve ser cumprida, no mínimo, a etapa do processo estabelecida. Desta forma, dentro deste período, se não for cumprida, poderá ser aplicada multa. Os novos prazos evitam uma data final única para todas as fases do processo. O objetivo é fomentar a inclusão de todos os estabelecimentos no sistema de prevenção sem inviabilizar as atividades econômicas do Estado”, explica o Comandante.

Processo é mais lento em prédios públicos

Em relação aos prédios públicos, conforme Batista, o processo de adequação passa por duas etapas licitatórias: uma para o desenvolvimento do projeto e outra para a execução. “Neste caso, em específico, os valores devem estar previstos na lei orçamentária do ente federado a que pertence. Todo este processo é mais moroso do que a iniciativa privada. Então, de maneira geral a maioria das edificações públicas hoje encontra-se em uma das etapas do processo de regularização possuindo os itens mínimos de segurança previstos na norma”

Todos os responsáveis pelos prédios públicos que ainda não possuem o alvará já foram oficiados de acordo com a etapa do processo que deve ser concluída. Desta forma, a cada ano vem aumentando o número de espaços regularizados.

A situação em Bento Gonçalves

Bento Gonçalves possui atualmente 15 mil cadastros de Plano de Prevenção Contra Incêndio (PPCI), sendo que, destes, três mil já possuem o alvará e outros 2.400 estão em tramitação. Os números são levantados no sistema atual, que será substituído este ano por outro que dará possibilidade de maior controle e presteza no serviço. “O maior avanço da lei 14.376 foi deixar muito claro de quem são as responsabilidades na liberação das edificações: o Corpo de Bombeiros, como responsável técnico, e o proprietário como responsável pelo uso. Nessa perspectiva, uma das primeiras obrigações do proprietário é se licenciar no Corpo de Bombeiros. Desta forma, não há atribuição de forma primária dos bombeiros a sair em obrigação para que todos os ocupantes se licenciem. Essa é uma atribuição deles. Então não temos como precisar quantas ainda devem ser licenciadas”, frisa o Capitão.

Com relação às repartições públicas, o Corpo de Bombeiros Militar local registra, em seu sistema, 32 com alvará e 140 processos em tramitação. No que diz respeito a escolas, que abrange todos os tipos de educandários (sejam públicos, privados, de idiomas, entre outros), 13 possuem alvará de PPCI e 100 processos estão em análise. Já relacionando casas de saúde (clínicas, consultórios, unidades básicas, entre outros), cinco possuem Plano aprovado e 60 estão em tramitação.

O Major ressalta que, com relação às análises, as mesmas estão sendo feitas num prazo aproximado de 20 dias, a partir da entrada. Após a primeira verificação no projeto, saindo o Certificado de Aprovação, o proprietário tem 30 dias para solicitar a vistoria, que é marcada para menos de 15 dias após. “Se tudo estiver de acordo com o projeto, emitimos o Alvará de PPCI. Caso contrário, o projeto retorna para o responsável técnico para as devidas adequações. Na sequência, é dada nova entrada para reavaliação, e o processo segue novamente todas as etapas”, frisa.

Cuidados especiais

Uma das maiores preocupações de moradores de condomínios diz respeito à sobrecarga nas instalações. Nesta época do ano, centenas de pessoas buscam por aparelhos de ar-condicionado, comodidade que também acaba por amenizar o frio durante o inverno, assim como as estufas, que consomem alta potência de energia. Em algumas edificações, os referidos aparelhos (ar-condicionado) são instalados no foço de luz, por onde também, em alguns prédios, passam canalizações de gás central.

O Major alerta que as fiscalizações das centrais de Gás Liquefeito de Petróleo – GLP são feitas no momento das vistorias para emissão do alvará dos Bombeiros respeitando algumas responsabilidades técnicas dos profissionais que a projetaram e executaram. “Não há de forma concreta uma proibição quanto a instalação desses dispositivos próximos a tubulação de gás. A NBR 13523, que é a norma que regula projetos, montagem, alterações, localização e segurança da central de GLP, e que deve ser observada rigorosamente para projetos e execução das centrais de gás, exige afastamentos mínimos de segurança para os botijões, válvulas e tomadas de abastecimentos. Nesses casos, bem como em qualquer outro que envolva instalações de gás, é de suma importância que a instalação de aparelhos de ar-condicionado tenha um acompanhamento de um responsável técnico que avaliará todos os riscos presentes, bem como realizar uma avaliação periódica com objetivo de assegurar que a central de GLP esteja com o funcionamento adequado e seguro”, diz. Batista recomenda ainda que, em qualquer suspeita de vazamento, deverá haver a comunicação imediata ao Corpo de Bombeiros e à empresa distribuidora de gás, a fim de que sejam realizados os procedimentos técnicos específicos.

A visão técnica da lei

O presidente da Associação Construção Civil da Região dos Vinhedos (Ascon Vinhedos), engenheiro civil Milton Milan, esclarece que todos os prédios onde há circulação de pessoas, sejam eles públicos ou privados, industriais, comerciais, residenciais ou religiosos têm que estar adaptados. “Os proprietários precisam receber a orientação de um profissional. Em caso de estabelecimentos menores, pode ser feito um PPCI muito simples, com instrução dos próprios bombeiros. Porém, caso não haja um projeto assinado ou uma instrução orientada, não será feita a vistoria e, por consequência, a liberação, estando, assim, o local irregular”, assinala.

Milan compara o trabalho realizado por um profissional da área com a automedicação. “Se uma pessoa se medica, pode se prejudicar, porque quem sabe o que deve ser administrado é o médico. Os projetos precisam ser desenhados, as planilhas devidamente preenchidas, para que fique tudo armazenado, a fim de evitar consequências mais graves”, afirma.

Conforme o Engenheiro, os parâmetros a serem seguidos estão todos especificados dentro das normas técnicas de incêndio e, também, todas as diretrizes e leis feitas após o ocorrido. “Obviamente que um prédio novo tem que estar 100% adaptado, ao passo em que os antigos deverão se adequar dentro das possibilidades estruturais. Porém, as regras são bastante objetivas e precisam ser seguidas”, conclui.

Denúncias

As denúncias podem ser feitas por e-mail ([email protected]), por telefone: (54) 3451 1133, ou diretamente na sede do quartel (Av. Osvaldo Aranha, 359). O denunciante precisa se identificar e deixar um número de telefone para contato, podendo apresentar os fundamentos da constatação da irregularidade. A identidade será mantida em sigilo.

Fotos: Mônica Rachelle, Elisa Kemmer e Divulgação