Tem uma história que mudou minha vida que lembro em todo final de ano e gostaria de contá-la a você. Certamente, você também tem a sua…

Parece que a chegada do final do ano empurra nossos pensamentos para trás.

Quando decidi deixar na véspera de Natal, a casa dos meus pais para vir morar na cidade grande, queria deixar para trás qualquer coisa que nem eu mesmo sabia direito o que era.

Talvez fosse a falta de vocação de trabalhar a terra puxando um cabo de enxada ou acabar com os braços num cabo de foice. De uma coisa eu tinha certeza: o futuro na roça me era um céu encarvoado.

Talvez a cidade grande representasse a perspectiva de salário no final do mês, fartura de garotas e domingos sem missa, a um jovem de dezesseis anos de idade.

Talvez tenha sido todos esses fatores juntos.

Na noite de domingo que antecedeu a partida, o sono esgotou-se logo após a meia-noite. E não veio mais. Acendi a luz, contei e recontei dezenas de vezes as tábuas do teto.

Ainda hoje, passados mais de trinta e cinco anos, tenho o número na cabeça: vinte e uma tábuazinhas. Cansado com as tábuas, prendi-me a outros rumores opressivos que quebravam a quietude da noite. As molas duras do colchão rangiam ao menor movimento do meu corpo. Do quarto dos meus pais, alguém tossia uma tosse abafada.

Do lado de fora do quarto, prendi-me a outros rumores: os sapos com seus martelos trabalhando no açúde e os grilos endireitando raios de luar no porão da casa.

Na primeira hora da manhã da antevéspera do Natal, enquanto minha mãe me ajudava a arrumar meia dúzia de peças de roupa na mochila que usava para as coisas da escola, percebi que ela me olhava com uma compaixão que me incomodava. Aquele seu olhar gritando para ficar, me fez pensar que, naquele momento, estava deixando seu zelo definitivamente para trás. E doía nela minha decisão de partir.

Ao socar na mochila o pequeno álbum de fotos, em cuja capa eu aparecia com o meu inseparável amigo, tive a certeza de que estava dando às costas a uma convivência de longa data. Sabia que um amigo é para sempre, mas também sabia que a amizade precisa ser cultivada para que não vire um quadro envehecido no amarelo do tempo.

Ao encostar o portão caiado, com o dia ainda não inteiramente claro, sabia que estava deixando para trás todo um modo ingênuo de ver e pensar o mundo. Estava deixando para trás os banhos de mangueira, as pescarias com o anzol de tostão, as arapucas de taquara, as garrafas de refrigerante compartilhadas e os presépios de barba-de-bode.

Tive um pouco de medo de não encontrar forças para levar adiante a decisão de partir. Virei-me para trás, não sei por que motivo. De pé no patamar da escada, minha mãe acenou-me longamente. Não consegui afastar-me sem que uma lágrima fria traísse meu riso de asa quebrada de passarinho.