Clacir Rasador

Eu nasci com fome! E você? Embora não lembremos, talvez seja esta a primeira dor da vida fora do ventre, já aliviada em seguida pelo seio materno. A fome não perdoa, aliás, pior que isso, pode ter sido ela a razão do pecado original, ou seria Eva uma gulosa ao se lambuzar com a maçã do paraíso?

Por muito pouco, a fome não tirou o cajado de Moisés, fazendo com que o povo de Israel quase desse as costas à Terra Prometida e preferisse as panelas cheias de carne do Egito às custas da sua escravidão, não fosse o bendito e providencial maná no deserto enviado por DEUS.

Foi esta mesma fome que, pelas mãos do ditador Stalin, na antiga União Soviética, manchou a história da humanidade com o genocídio chamado “Holodomor”, impossibilitando, pela força militar, o acesso a alimentos, e dizimando cruelmente cerca de 14 milhões de pessoas.

Enfim, não faltam relatos na história em que a protagonista é a vilã fome, seja em épocas de guerra não declaradas e, pasmem, também em épocas de paz. Diariamente, sem passaporte ou salvo-conduto, invade fronteiras de países, de estados, de cidades, dos lares das famílias, sendo que o avanço é potencializado quando não encontra qualquer resistência solidária; não bastasse isso, às vezes é agraciada pelo egoísmo da invisibilidade.

Sem qualquer pretensão de apontar culpados e/ou dar voz a ideologias político-partidárias, o certo é que a pandemia – sem partido, ou talvez esteja em formação o partido dos Intocáveis, os correligionários contrários à vacina – rasgou a economia mundial e, igualmente em nosso país e na nossa próspera cidade, abriu caminhos para a fome.

Sempre é bom lembrar que o pão é sagrado. Este ensinamento de nossos ancestrais vem de berço. Particularmente, recebi especial reforço deste mandamento da sobrevivência quando pego em traquinagem, lá pelos idos de 1980, na sétima série do primeiro grau – hoje sétimo ano no ensino fundamental: no Colégio Sagrado Coração de JESUS, jogava sagu pelo canudinho de caneta, nos cabelos das gurias – hoje, além de indisciplina, seria taxado como politicamente incorreto – quando um dos grãos foi interceptado pelo saudoso professor de matemática, Sr. Avelino Zatt e fomos parar todos – eu e meus amigos – na sala da direção, ocasião em que ouvimos uma palestra da Irmã Luiza Catarina Della Torre sobre a fome no mundo na África, mais especificamente, na Etiópia…

Uma realidade distante dirão os mais céticos ou ainda àqueles embrenhados na sua ilha de egoísmo desconectada do mundo real. Outros muitos dirão que trabalho não falta em nossa cidade – terra fecunda cantada em prosa e verso no nosso hino – para ganhar o pão de cada dia com o suor do próprio corpo, desígnio Divino por herança daquela mordida na maçã por Adão e Eva. De certa forma quero crer que sim, há muitas oportunidades, mas não posso negar ou pecar pela cegueira da invisibilidade dolosa, a realidade da fila que margeia a Igreja Santo Antônio todas as semanas para cada família receber uma sacola básica da obra Pão dos Pobres.

A propósito, certa vez, aprendi que, mais que dar o peixe, é preciso ensinar a pescar… É uma verdade com a qual cresci e defendo, pois também não sou adepto do assistencialismo.

Porquanto o pão é sagrado, por outro lado, a fome é perversa – serviu até mesmo ao lado sombrio para tentar a JESUS – pois, tal qual os cabelos de cobras da figura mitológica Medusa, a fome tem muitas bocas; é preciso saciar primeiro o corpo para, logo mais, saciar o espírito com a dignidade do trabalho.

Quisera sejamos, cada um, o mocinho do lado bom da força contra a sombria vilã fome; não requer, de forma alguma, que sejamos protagonistas, antes disso, sejamos anônimos, porém não deixemos jamais que o próximo não sinta o poder da solidariedade pelas nossas obras.