Médico cardiologista, presidente da Associação Médica de Bento Gonçalves (AMEB), Fernando Cenci Tormen, diz que lidar com a saúde das pessoas gera uma sobrecarga física e mental muito grande e que exercer a medicina, atualmente, é um desafio diário

Fernando Cenci Tormen atua como cardiologista em Bento desde 2012

Formado pela Universidade de Caxias do Sul (UCS) em 2006, com residência em Medicina Interna pelo Hospital Geral de Caxias do Sul e Cardiologia pelo Instituto de Cardiologia do Rio Grande do Sul (IC-FUC), a qual concluiu em 2012. Também foi médico do Exército Brasileiro no Hospital de Guarnição de Santiago. Nascido em Bento Gonçalves, filho de Basílio José Tormen e Serli Maria Cenci Tormen, Fernando Cenci Tormen, que atua como cardiologista no Município desde 2012, ao contrário de muitos jovens, não vem de uma família de médicos. Aos 17 anos, considerando-se à época muito jovem para tomar tamanha decisão, precisou escolher a carreira que queria seguir pelo resto da vida. E a vontade de ajudar a avó, Olga Bertuzzo Cenci, que tinha muitos problemas de saúde os quais ela mesma denominava “mistérios”, até então não solucionados, fez com que optasse por esta área. Hoje, ele divide o consultório com o único irmão, também cardiologista, William Cenci Tormen. O médico administra o tempo entre as consultas, os plantões no Hospital Tacchini e o lazer: natação, corrida, academia e, sempre que possível, viagens.

Como despertou a vontade de ser médico?

Creio que minha história seja um pouco diferente do habitual. A maior parte dos colegas vem de famílias já tradicionais na medicina, ou convive com pessoas que atuam na área da saúde. No meu caso, não foi nada disso. Foi uma escolha um tanto difícil. Entre 16 e 17 anos, encerrando o Ensino Médio, eu me considerava imaturo para definir uma profissão para seguir pelo resto da vida. Eu conversava muito com a minha avó, que tinha problemas os quais intitulava “mistérios”. Aquilo a atrapalhava. E eu, querendo tentar ajudar, resolvi cursar medicina. Quando ingressei na faculdade eu era um dos mais jovens da turma e, realmente, não tinha muita certeza se era aquilo que eu queria. Mas com o passar do tempo, com o contato com professores, colegas e especialmente os pacientes, percebi que foi a melhor decisão. Hoje, tenho a convicção de quão correta foi minha escolha.

O cardiologista com a avó Olga Bertuzzo Cenci, que serviu de inspiração para cursar medicina, e o avô Severino Cenci

A medicina é uma classe unida?

Bastante. Temos um excelente relacionamento entre profissionais. A união, creio eu, vem desde os tempos de faculdade. Normalmente, nos outros cursos, os alunos cursam disciplinas distintas e terminam com uma turma diferente da que iniciou. Já a medicina, por ser um curso integral, geralmente, a turma que inicia, acaba terminando junta. Quando nos estabelecemos numa determinada cidade, seja a nossa de origem ou não, é automático conhecermos os colegas para tirarmos dúvidas sobre os pacientes, aprendermos a burocracia; ninguém consegue nada sozinho. Além disso, nos plantões, convivemos com profissionais das mais diversas áreas. E isso faz com que nos tornemos unidos.

Principais objetivos e conquistas de sua atuação como presidente da AMEB.

Um dos principais objetivos da AMEB é proporcionar aos associados o acesso a conteúdo científico. Tentamos sempre trazer palestrantes de renome periodicamente, participamos da Jornada de Cardiologia, evento já consagrado que atrai profissionais de todo o Estado. Criamos atividades de integração, propiciamos acesso a revistas médicas de alta qualidade, entre outras atividades. Também temos um cunho social muito importante. Participamos anualmente do Jantar Eles na Cozinha, promovido pela Liga de Combate ao Câncer e, juntamente com esta entidade, também trabalhamos na distribuição de medicação à população carente, através de parceria com a Farmácia da Liga. Nos últimos dois meses, especificamente, o maior desafio da Associação envolve a pandemia de coronavírus. Estamos fazendo parte do Comitê de Atenção à doença, junto com os demais órgãos de saúde do Município, visando traçar medidas de prevenção e estratégias de combate à doença. Também estamos apoiando a obra de construção de 40 leitos na Unidade de Pronto Atendimento (UPA), bem como em contato permanente com a Direção do Hospital Tacchini, que também possui o seu Comitê de Crise com foco no coronavírus.

Tormen, à direita, com o colega de diretoria da AMEB, Rodrigo de Campos Lopes, preparando o prato do jantar beneficente Eles na Cozinha, na edição de 2019

Como avalia a saúde em Bento?

A saúde em Bento Gonçalves é superior à média. Já atuei em vários hospitais de diferentes cidades, em função de Residências e do meu tempo no Exército. Aqui é muito melhor. Existe um comprometimento muito grande do Poder Público com o bem-estar da população. Temos um hospital que é referência, apoiado por um plano de saúde próprio, que oferece aos pacientes do Sistema Único de Saúde (SUS) mais do que a cobertura normal. Um exemplo disso é o setor de oncologia, que oferece tratamentos baseados em protocolos de última geração, muitas vezes não oferecidos pelo SUS, graças a parcerias com fornecedores e iniciativa privada. A Prefeitura, por exemplo, utiliza o sistema de compra de consultas, possibilitando ao paciente ser atendido no consultório do médico, e não somente nas unidades de saúde, o que valoriza, e muito, as pessoas da comunidade. Existem também estratégias para tentar minimizar o tempo para realização de cirurgias eletivas. Claro que tudo isso ainda fica muito aquém do que consideramos ideal. Temos problemas, sim, pacientes aguardando consultas e cirurgias. Este assunto está sempre em pauta nas discussões, mas esbarramos no mesmo problema: financiamento. As tabelas do SUS são extremamente defasadas. O atendimento que temos na cidade só é superior devido ao entendimento da Administração e do Conselho do Hospital Tacchini em buscar alternativas para lidar com o fato de que, muitas vezes, o SUS paga R$1 para algo que custa R$10. Além disso, não se pode deixar de citar os esforços da Prefeitura, que continuamente busca complementar os repasses para garantir o funcionamento dos serviços terceirizados, além de estar sempre ampliando sua rede própria de atendimento.

Como vê o fato de Bento Gonçalves, com 120 mil habitantes, ter um novo hospital?

Nossa cidade tem algumas características peculiares. Com relação à saúde, quanto mais, é sempre melhor. Se tivéssemos 10 hospitais, certamente estariam sendo utilizados. Porém, temos acompanhado as taxas de ocupação do Tacchini e, com exceção de alguns picos durante o inverno, a instituição sempre deu conta da demanda. É muito raro – e digo que comigo nunca aconteceu – ter que internar um paciente e não ter leito, pois é tudo muito bem organizado. A Unidade de Terapia Intensiva (UTI), por exemplo, no passado tinha apenas 10 leitos. Gradualmente ela vem sendo aumentada. Hoje contamos com 20 e, em alguns dias, com 30, todos com equipamentos novos, de última geração e com a estrutura totalmente renovada. Agora, durante a pandemia, foram criados rapidamente leitos extras, todos com isolamento, para alocar os pacientes mais graves. Então, apesar de termos somente um hospital, a comunidade pode ficar tranquila, pois o Tacchini está evoluindo proporcionalmente às necessidades para garantir o atendimento das demandas apresentadas.

O complexo público hospitalar vai amenizar os problemas de atendimento e internação ou seriam necessárias outras alternativas?

A obra em si vem sendo pensada há bastante tempo. A ala que está sendo construída de maneira emergencial para o COVID-19 é apenas uma fração da estrutura. Para o todo ficar pronto, são necessários muitos investimentos. Certamente, o objetivo deste complexo não é substituir o atendimento atual, mas sim, complementar, especialmente no que diz respeito a pacientes de baixo risco. De qualquer forma, a estrutura como um todo será de grande importância para agilizar o atendimento à população. Novamente, esbarramos nas questões de financiamento, nos custos de manutenção constante.

Cabem tantos médicos em Bento? Ainda há carências? Em que área?

A quantidade de médicos existente em Bento Gonçalves está equilibrada. Não temos gargalos em nenhuma especialidade.  Temos ainda capacidade de substituir colegas que não podem estar trabalhando em situações de exceção.  Neste momento, por exemplo, há vários profissionais afastados em função de serem de alto risco para o coronavírus. Nós nos preocupamos com a qualidade dos profissionais que estão chegando à cidade, pois sabemos que, ao longo dos últimos anos, houve uma significativa deterioração da qualidade média dos cursos de medicina, com a criação de diversos cursos com estrutura falha, que não propiciam aos seus estudantes uma parte prática adequada. Aliado a isso, houve um aumento no número de faculdades de medicina, porém, não aumentaram as vagas de Residência Médica. Nós entendemos que a prática é fundamental para que os novos médicos possam ser mais capacitados e desenvolver suas atividades com melhor qualidade. Medicina não é tão fácil como muitas vezes dizem para a população.

Como avalia o comportamento da população diante da pandemia de coronavírus?

Vejo que a população tem sido uma parceira inigualável neste momento de crise. Nunca passamos por uma situação parecida com esta, com tantas decisões inéditas, difíceis de serem tomadas. Muitos medicamentos vêm sendo testados, mas não sabemos de maneira definitiva quais serão os efeitos positivos e negativos. Por isso, muitas vezes, temos que tomar decisões baseadas naquilo que é mais provável, mas sem deixar de lado as lições que a ciência já nos deu ao longo da história. A população aderiu bastante às medidas, entendeu nosso recado. Tem sido difícil para todos, especialmente para os trabalhadores autônomos, idosos, pessoas mais vulneráveis. O que se espera é que tudo isso passe e que possamos voltar ao normal.

Bento Gonçalves está preparada?

Na realidade, nenhum local do mundo estava preparado para algo desta proporção, mas Bento Gonçalves está se preparando como nenhuma outra cidade. Tenho esperança que nossa estrutura irá dar conta do recado. Por hora está tranquilo, mas não sabemos como será. Este é o grande desafio: a imprevisibilidade de algo novo.

A população de Bento Gonçalves é preocupada com a saúde?

Na minha opinião, sim. Observamos que o número de pessoas que se exercitam tem crescido, e isso é motivo de orgulho. Mas ainda precisamos reduzir as taxas de tabagismo e de obesidade. Temos uma alta prevalência de câncer e problemas de saúde mental. Isto nos preocupa. Recentemente discutimos projetos com foco na saúde em Bento Gonçalves daqui a 20 anos e estes tópicos têm recebido destaque das lideranças. Durante e depois do estrago da pandemia, temos que voltar nossos olhares para a depressão, a ansiedade, os suicídios e demais repercussões negativas do isolamento.

Como você avalia a saúde das nossas crianças e adolescentes?

Este é um ponto importante. Cada vez mais sabemos que boa parte das doenças que se manifestam nos adultos começa na infância. Por isso temos que, desde muito cedo, ensinar bons hábitos alimentares e de estilo de vida. Precisamos ainda evitar que crianças e adultos jovens entrem em vícios como cigarro, álcool e outras drogas, ou pratiquem sexo de maneira irresponsável.  É importante que se diga que as academias ao ar livre e os espaços de lazer colaboram para que o tempo ocioso seja investido com qualidade e segurança.

O que faltaria para cuidar da população carente, dos moradores de rua? Eles são um problema de saúde pública?

Sem dúvida! A população carente deve ter um atendimento especial, pois sabemos que está mais sujeita tanto à violência quanto a problemas relacionados à saúde como um todo. A Secretaria de Esportes e Desenvolvimento Social (SEDES) tem uma série de projetos, mas muitas pessoas ainda ficam desassistidas. De qualquer forma, sei que a pasta se esforça para ajudar a todos. Tive uma experiência com uma paciente idosa, que tinha dificuldades em tomar medicações, cuidar da saúde. Acionei a Secretaria, à época através do secretário Eduardo Viríssimo, que deslocou sua equipe e prontamente nos auxiliou. É um trabalho, sem dúvida, muito elogiável.

Bento Gonçalves: indústria, comércio, turismo, como você vê o desenvolvimento do município?

Sou suspeito para responder esta questão, pois considero Bento Gonçalves uma cidade altamente diferenciada. O povo é muito trabalhador. A topografia é peculiar e os atrativos como um todo favorecem, e muito, ao turismo. As indústrias são muito fortes, o comércio é bem estruturado. O setor de serviços, seja ele na saúde ou nos demais, é muito completo. Bento Gonçalves teve uma oportunidade ímpar de crescer e soube aproveitar. Eu adoro essa cidade. E digo mais: se fôssemos uma cidade europeia, estaríamos entre as mais conhecidas!

O que falta para chegarmos a um bom nível de desenvolvimento no quesito saúde?

Falta investimento. A tabela SUS está congelada há muitos anos e simplesmente não supre mais nada. A população, por outro lado, precisa entender que não existe em nenhum país, nem mesmo nos mais ricos, recursos infinitos. As pessoas precisam parar de fumar, precisam emagrecer, precisam se cuidar, e não achar que o responsável pela sua saúde é o médico ou o sistema. Cada um vai colher os frutos de suas decisões. Ter saúde não é uma coisa automática. É uma conquista. Ou seja, cada um deve batalhar pela sua.

Interprete Pasin, Leite e Bolsonaro.
Pasin: Tem sido um grande aliado. Ele realmente acredita que a saúde é prioridade. Vejo que tem feito um ótimo trabalho neste e em outros quesitos.

Leite: Está enfrentando desafios muito importantes. Administra um Estado quebrado há muito tempo. Precisa resolver muitos problemas com poucos recursos, e isto é muito difícil. Acho que ele não acreditava – ou não sabia – que a situação era tão ruim.

Bolsonaro: Vejo que ele tem uma boa índole, mas se mete em muita confusão pela maneira em que expõe seus argumentos. É da personalidade dele. Parece-me que quer mesmo que a corrupção termine e que o Brasil cresça.

Qual o seu Brasil sonhado? Acredita nele?

Acredito fielmente no Brasil. Quando jovem, pensava muito em ser médico em outro país. Cheguei a me informar sobre isso. Porém, ao viajar a turismo, comecei a me dar conta de que todos os locais têm problemas, de um jeito ou de outro. O ser humano logo sem acostuma com aquilo que está bom em um lugar e passa a valorizar mais o que lhe trás desagrado, seja aqui, seja na Nova Zelândia. O Brasil, especialmente nossa região, pelo clima, pelo povo trabalhador, tem tudo para dar certo. Acho que depende muito de nós mesmos, pararmos de esperar pelos outros e sermos a força motriz desta mudança, começando pelas nossas atitudes.

Conselhos para um jovem que sonha em ser médico.

A medicina tem ficado mais difícil a cada ano. Lidar com a saúde das pessoas gera uma sobrecarga física e emocional muito grande. A doença mental entre os profissionais da área cresceu absurdamente, com índices de depressão e suicídio superiores à média. Um dos nossos maiores desafios é dar o melhor sem absorver (tanto), as inúmeras situações do dia-a-dia. Quem pensa em ser médico deve ter em mente que o desafio para ajudar as pessoas é diário e isso, apesar de gerar alegria quando dá certo, frequentemente gera frustrações.

Uma receita para ser saudável.

Estava há pouco tempo lendo um livro que me foi presenteado pelo superintendente do Hospital Tacchini, Sr. Hilton Mancio, que fala sobre as características de estilo de vida das pessoas que vivem nas áreas mais longevas do mundo. Lendo esse livro me chamou bastante atenção um ditado utilizado numa dessas áreas, que diz que nós devemos sair da mesa quando temos 80% da nossa fome suprida. Parece ser unânime que, uma das receitas para ser saudável, é comer menos, de maneira equilibrada, de tudo, mas um pouco. Além disso, precisamos ter uma atividade que nos dê prazer, que nos faça quebrar o ciclo de trabalho/casa, seja um hobby esportivo, cozinhar, praticar um idioma, qualquer tipo de atividade em que possamos desenvolver as nossas habilidades, tanto cognitivas quanto sociais. Falando nessa parte social, é fundamental estarmos inclusos num grupo, que tenhamos nossos amigos, pessoas para conversar e trocamos opiniões. Isso está diretamente relacionado com redução dos níveis de estresse, de ansiedade e de depressão. Não podemos deixar de pontuar o exercício físico. Nosso corpo não foi feito para ficar parado. Corpo forte adoece menos. E se adoecer, sai mais rápido da doença. Muitas vezes, a diferença entre a pessoa que adoece e fica bem e a que adoece e tem desfecho pior é o seu preparo físico. Além de evitarmos os vícios, dentre eles o excesso de álcool, devemos procurar ter um sono reparador, com horas de repouso suficientes para que nosso corpo possa se regenerar e acordar bem no novo dia.

Nos momentos de lazer, Tormen pratica corridas, natação e academia. Nesta imagem, correndo na Maratona do Vinho, no Vale dos Vinhedos

No que se resume seu lazer: culinária, atividade física, condições de saúde. Se puder, dê algumas dicas.

Penso que não podemos só trabalhar, ir para casa, dormir, acordar e começar de novo. Para nossa saúde, é fundamental que tenhamos um tempo só nosso. Todos os profissionais saúde – não só os médicos – trabalham muito. Eu não sou diferente, mas reservo uma fração do meu tempo para mim. Corrida, natação e academia me fazem muito bem. Meu hobby diário, posso dizer que é o exercício. Mas também gosto muito de socializar com amigos e com a família. Gosto muito de viajar. Sempre que posso faço minhas malas, tento conciliar com algum congresso ou atividade científica e vou para algum lugar. Se der para, no caminho, passar por algum lugar com belas montanhas e muita natureza, melhor ainda. Cada um tem que, aos poucos, descobrir o que lhe traz alegria, o que lhe faz bem, e se focar nisso. Penso que temos que dar o máximo de significado à nossa existência, ajudando aos outros, mas nunca esquecendo de nós mesmos e das pessoas que amamos.

Quer ajudar na construção e compra de equipamentos dos leitos de isolamento que estão sendo construídos junto à UPA? A Associação Médica de BG lançou uma vaquinha online, onde todos podem participar com qualquer valor a partir de 10 reais. Basta acessar o link https://abacashi.com/p/vencercoronavirus ou escanear o QR code com a câmera do seu celular.

Fotos: Arquivo Pessoal