As fortes chuvas e as inundações que devastaram o Rio Grande do Sul impactaram milhões de pessoas, deixando milhares desabrigadas e resultando em mais de 100 fatalidades. No entanto, as ramificações desse evento climático para a saúde pública serão duradouras, demandando um planejamento abrangente por parte das autoridades e dos profissionais da área.

Com base em evidências coletadas a partir de grandes enchentes ocorridas em diferentes partes do mundo, espera-se um significativo aumento nos casos de várias doenças infecciosas, incluindo diarreia, problemas respiratórios, leptospirose, hepatite A, cólera, tétano, dengue, influenza e covid-19.

Especialistas explicam que tais enfermidades surgirão em diferentes momentos, seguindo o período de incubação dos vírus, bactérias e outros patógenos, além de serem influenciadas pelo tipo de exposição de risco enfrentada pelas pessoas envolvidas na tragédia, tanto durante quanto após o evento.

O início de tudo

A cronologia começa com o desencadeamento das chuvas e das inundações. Durante esses acontecimentos, residentes das áreas afetadas entraram em contato com a água. Muitos foram forçados a evacuar suas residências, resultando na exposição à matéria orgânica que emergiu de bueiros, valas e sistemas de esgoto. A água turva também carrega excrementos humanos e de animais. O contato ocorre através da pele, das membranas mucosas e da ingestão acidental da água contaminada. Além disso, algumas pessoas sofreram ferimentos por cacos de vidro, madeira e outros objetos cortantes, criando novas vias de entrada para patógenos no corpo, aumentando o risco de contraírem doenças.

Após o período inicial de resposta ao pico das inundações, surge a necessidade de lidar com as doenças infecciosas contraídas durante esse processo, marcando o início da primeira onda de preocupações. Ao analisar diversos acontecimentos do tipo, especialistas apontam que, nos primeiros dez dias após o evento climático, as doenças que mais aparecem são infecções de pele, pneumonites ou pneumonias por aspiração, infecções respiratórias virais e gastroenterites.

De acordo com Isabele Berti, infectologista do Tacchini Sistema de Saúde, pessoas que tiveram contato com águas da enchente, lama e que estão em abrigos devem ficar atentas a qualquer sintoma que venham ter. “Diversas pessoas ficaram expostas à uma possível contaminação por muito tempo. Agora, estão aglomeradas em abrigos, o que facilita a proliferação de vírus e bactérias pelo ar. Elas devem estar alertas se tiverem febre, mal estar, dor no corpo, vômito, diarreia, mudança na coloração da pele, urina e fezes”, alerta.

Ainda segundo a médica, o contato com materiais contaminados pode ocorrer de maneiras diferentes e os sintomas apresentados podem ser parecidos, por isso é importante passar por avaliação médica para obter o diagnóstico correto e o tratamento devido. Além disso, também é importante revisar e atualizar as vacinas daqueles que foram expostos, em grande maioria disponibilizadas pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Para alguns grupos específicos, como indivíduos envolvidos nos resgates, profissionais de saúde e socorristas, a lista também inclui as vacinas contra hepatite B e febre tifoide.

O que esperar

Após mais de uma semana dos acontecimentos iniciais, uma grande preocupação é a leptospirose, doença causada por uma bactéria transmitida a partir do contato com a urina de animais, principalmente ratos.

Por fim, algo que historicamente sucede as grandes inundações são as doenças transmitidas por vetores, como é o caso da dengue. No entanto, a situação no Rio Grande do Sul em relação a esse problema de saúde é incerta, pois o mosquito transmissor, Aedes aegypti, costuma ficar mais ativo quando a temperatura está elevada, durante o verão e a primavera, e nesse momento, o estado vem apresentando temperaturas mais baixas. Porém, isso não permite que gestores e profissionais de saúde relaxem completamente em relação a essa doença. À medida que a água começar a baixar, pode ocorrer a formação de muitos focos de criadouro de mosquito e a dengue voltará a ser uma preocupação.
Para quem participa do resgate de animais, Isabele traz algumas informações relevantes. “Neste caso, ocorre a exposição a animais que não se sabe como estão de saúde, se são vacinados.

Independentemente da espécie, o contato com um animal doente pode acarretar em infecções de pele. Se houver mordedura, deve-se procurar atendimento médico com urgência, para que seja administrada a profilaxia da raiva humana, que não tem cura. Também pode haver o aumento do aparecimento de animais peçonhentos, como cobras e aranhas, devido a todas essas mudanças em seus ecossistemas. Caso ocorram picadas, é necessário tratamento com soros específicos, que deve ser feito com a maior brevidade possível”, ressalta.

Prevenção ainda é a melhor escolha

Para frear a contaminação, se possível, é indicada a utilização de botas de borracha, roupas impermeáveis, luvas para evitar traumas nas mãos e o contato direto com agentes contaminantes, máscaras e óculos de proteção, para proteger de possíveis respingos. Porém, nem todos têm condições de se munirem com todos esses equipamentos de proteção, por isso, é indicado lavar bem as mãos e o rosto com água limpa e sabão.

Segundo Isabele, a água encanada está tratada, como de costume, liberada e adequada para consumo, com os mesmos cuidados de sempre. “A água da torneira pode ser consumida, mas deve ser filtrada ou fervida antes. Existe um grande risco de se beber diretamente de poços artesianos neste momento. Na dúvida, é melhor não arriscar. O mais seguro é consumir água mineral engarrafada”, orienta.

O Centro Estadual de Vigilância em Saúde, da Secretaria Estadual da Saúde (SES), publicou um Guia Básico para riscos e cuidados com a saúde após enchentes, como forma de alertar a população para as doenças transmitidas pelo contato com a água das inundações; as doenças relacionadas ao consumo de água ou alimentos contaminados, as condições sanitárias em abrigos; a ocorrência de lesões, tétano acidental e choques elétricos; acidentes com animais peçonhentos; problemas respiratórios e alergias ligadas à presença de umidade e mofo no ambiente; e para as doenças vinculadas à higiene pessoal e alimentar precárias.


Dentre as recomendações, estão o descarte de alimentos e remédios que entraram em contato com a água das enchentes, lavar utensílios domésticos com uma mistura de 20% de água sanitária e 80% de água potável, bem como limpar pisos, paredes e outros objetos com água e sabão, seguido de desinfecção com água sanitária. É importante dar atenção também a limpeza da caixa d’água, que pode ter acumulado resíduos que tornam a água do reservatório imprópria para uso.

Saúde mental e emocional

No momento, o foco está na prestação de socorro emergencial às pessoas mais necessitadas. No entanto, em breve, outras condições de saúde podem vir à tona. Além das doenças infecciosas, os desafios de saúde associados a eventos climáticos extremos ultrapassam as fronteiras de vírus, bactérias, parasitas e protozoários. Um exemplo são os pacientes que dependem de medicamentos para controlar o diabetes e a hipertensão. Sem o devido acompanhamento, essas doenças podem se descompensar, resultando em complicações graves, como ataques cardíacos e acidentes vasculares cerebrais (AVC).

Quando as águas baixarem, será necessário abordar também as questões de saúde mental e os traumas acumulados durante esse período, destacam especialistas. Um estudo da Universidade de Queensland ressalta que transtornos como estresse pós-traumático e depressão são outras consequências de longo prazo das grandes inundações. Portanto, há uma preocupação generalizada entre os profissionais de saúde sobre como manter o sistema minimamente estruturado.

O Ministério da Saúde anunciou, no sábado, 11, que está elaborando um plano para atendimentos de saúde mental às vítimas da tragédia climática histórica que vem atingindo o estado do Rio Grande do Sul desde o dia 29 de abril. Primeiramente, o programa será voltado para a população afetada. O segundo eixo vai focar na saúde mental dos trabalhadores que estão atuando na tragédia. Já o terceiro passo, será fornecer diretrizes para o governador e os prefeitos, a fim de estabelecer uma rede de atendimento continuada.