Grasiele Boaro Navarini e Davi Navarini, de Bento Gonçalves, receberam a notícia de que o filho de oito anos havia sofrido um AVC Hemorrágico e morte encefálica no início de fevereiro. Mesmo diante da dor da perda, os pais contam como foi a decisão de doar os órgãos do menino

Luis Miguel Navarini, de oito anos, morava em Bento Gonçalves. Era uma criança amada por todos. Sempre que possível, estava no interior do município de Muçum, junto com seu avô Neuro Boaro, em cima do trator e aprendendo, desde cedo, o valor do trabalho e de estar junto com quem se ama. Era ali, que o pequeno menino conhecia mais sobre a agricultura e das coisas mais simples da vida. Apaixonado por futebol, Luis Miguel intercalava os momentos de aula com a Escolinha do Esporte Clube Juventude, onde era goleiro. A criança espontânea e parceira, filho único de Grasiele Boaro Navarini e Davi Navarini, deixava alegria por onde passava.

Foi na última semana de aula, no ano passado, que a vida do menino de olhos azuis e sorriso no rosto mudou da noite para o dia. Do nada, surgiram hematomas nas pernas e nos braços, considerados pelos pais, no início, como resultados das partidas de futebol e das brincadeiras na escola, típicas de crianças na mesma faixa etária de Luis Miguel. No entanto, às vésperas do Natal, novos sintomas surgiram e geraram atenção especial dos pais. A situação seguiu com o agravamento dos sintomas, até que bolhas de sangue na região da boca e sangramento no nariz fizeram Grasiele e Davi correrem ao Hospital Tacchini.

De lá, uma bateria de exames para descobrir o que estaria afetando o pequeno Luis Miguel. Foi então que o resultado apareceu: ele estava acometido de uma doença chama Púrpura Trombocitopênica Idiopática. Foram 17 dias de internação entre leito normal e Unidade de Terapia Intensiva (UTI), já que a medicação forte era necessária, pois a enfermidade já tinha afetado o número de plaquetas. Nesse período, Luis Miguel, que apesar da pouca idade, já compreendia muita coisa, questionou Grasiele sobre o que viria pela frente. “Mãe! Se começamos 2024 assim, aqui no hospital, como vamos terminar o ano, o que será que vai acontecer conosco?”, disse à ela que, rapidamente, mesmo com dúvidas, tentou acalmar o filho. “Nesse momento senti um aperto no peito e com palavras carinhosas confortei e acalmei meu filho, dizendo que tudo ficaria bem e que eu sempre estaria ao lado dele, para tudo”, lembra a mãe.
Ao normalizar a situação, o menino recebeu alta e retornou ao lar. Como foi solicitado muito repouso, a família optou em ir para a casa dos avós maternos, em Linha Alegre, interior de Muçum, local onde o garoto mais amava estar, ao lado dos avós e dos bisavós. “Passamos as últimas três semanas da vida dele lá. Até que do nada, de um momento para o outro, na madrugada do dia 1º para 2 de fevereiro, ele acordou agitado na, pedindo para ir ao banheiro, e ao retornar para o quarto e deitar novamente começou a se agitar muito, resmungava bastante, parecia ter algo que o incomodava”, lembra o pai Davi. Pouco depois, o menino não tinha mais forças do lado direto do corpo, com dificuldades na fala.
Rapidamente, a família se dirigiu ao Hospital de Encantado, onde ele nasceu, em 16 de junho de 2015. Após ser socorrido e passado por inúmeros exames, veio a notícia de que ela havia sofrido um Acidente Vascular Cerebral hemorrágico (AVC). “Nisso, fomos transferidos para o hospital Tacchini e a luta contra a vida começou,. Estive todo o tempo acompanhando a situação, ao lado dele”, lembra Grasiele.

Com a internação na UTI e a luta pela sobrevivência, Luis Miguel realizou um procedimento, na esperança de reagir aos estímulos. No entanto, sem êxito. “Eu ficava 24 horas de olho nele, na expectativa de talvez, ele abrir o olho, ou mexer algum dedinho”, relata a mãe. Seguindo os procedimentos para a situação, o médico responsável pelo caso informou que seriam realizados mais três exames, com o objetivo de saber que ainda haveria oxigenação no cérebro. Em todos eles, o resultado foi negativo. “Meu menino estava em morte encefálica”, lamenta Grasiele.

De um em um milhão, e justamente esse um, seria o meu menino.

Grasiele Boaro Navarini

O choque ao receber a notícia mais temida

Nesse instante, em que tudo parecia estar acabado, um turbilhão de sentimentos passou pela mente e coração da mãe, que estava ali, perdendo seu único filho. “Foi um momento de raiva, dor, de culpa, em não aceitar o que estaria acontecendo. Lembro que eu sentei de frente para o médico e disse: então o senhor quer dizer que meu filho está morto? Ele, muito emocionado, apenas acenou com a cabeça dando a entender que sim. Aí o desespero tomou conta de vez”, revela.

O profissional ainda disse aos pais que as causas do AVC não teriam sido influenciadas pela doença recém descoberta. Segundo Grasiele, foi uma fatalidade pelo fato de ser muito raro isso acontecer com criança. “De um em um milhão, e justamente esse um, seria o meu menino”, relata emocionada.

Mesmo na dor, o ato de amor falou mais alto

Se, por um lado, poderia haver revolta e muitos questionamentos à Deus e ao que a família acredita, por outro, se cumpria aquilo que as sagradas escrituras pregam: fazer o bem sem olhar a quem. “Algo dentro de mim gritava mais alto, dizendo que eu precisaria fazer algo pelo meu filho. Tínhamos que mantê-lo vivo entre nós”, afirma Grasiele.

Foi então que ela e o marido sentaram e, por um momento, conversaram sobre a possibilidade de doar os órgãos do pequeno Luis Miguel “Decidimos por doar. Saber que ele poderia estar salvando muitas vidas e, com isso, acabando com a angústia de outros pais que estariam à espera de uma notícia para salvar a vida dos seus filhos”, lembra o pai. O sim das famílias Boaro e Navarini foi o primeiro registrado em 2024 pelo Hospital Tacchini para a captação de órgãos.

Mesmo com a autorização, o processo acaba sendo demorado. De acordo com a enfermeira responsável pela Comissão Intra-Hospitalar para Doação de Órgãos e Tecidos para Transplantes (CIHDOTT) do Tacchini, Ana Turmina, o tempo para realização do procedimento pode variar entre duas horas e um dia todo após a autorização da família. Conforme a profissional, a variação é decorrente de quantas captações serão realizadas. “Se for de múltiplos órgãos, o tempo é maior, pode levar até 24 horas. Já em caso de retirada das córneas, o tempo cai para duas horas”, explica.

Apesar da demora, a família seguiu firme no propósito de salvar outras vidas. “Sabíamos que seria a melhor escolha que teríamos feito e que certamente o Luis Miguel também estaria feliz, pensando a mesma coisa, pois ele sempre gostou de ajudar as pessoas, sendo muito prestativo, e não seria nada diferente agora. Continuaria com a missão de ajudar”, afirma Grasiele. “Eu como mãe, me sinto muito orgulhosa por ter tomado essa decisão, porque sei que ele salvou a vida de muitas crianças e sei que ele está por aí, entre nós”, ressalta.

Desejo de ouvir novamente o coração do filho

Questionados pela reportagem se teriam o desejo em conhecer algum dos pacientes que receberam uma segunda chance de viver, graças ao nobre gesto, Grasiele e Davi afirmam positivamente, em especial, aquele que recebeu o coração do seu filho. “Gostaria de ter a oportunidade de ouvir novamente o coraçãozinho dele bater, porém em outra criança. Isso seria uma realização tão grande para mim, como Mãe do Luis Miguel”, revela.

Apesar da dor da perda recente do filho único, Grasiele e Davi, dois jovens, compreendem o ato humano e solidário que realizaram. “Este gesto tão nobre, salva vidas, e isso não há dinheiro algum que pague. Precisamos ter empatia e saber se colocar no lugar no próximo, que está na angústia pela espera de um órgão para salvar a sua vida”, diz o pai.

De sorriso fácil e espontâneo

Luís Miguel era uma criança comunicativa, amável, que conquistava a todos rapidamente. Em Bento Gonçalves, o que mais gostava de fazer era jogar bola e andar de bicicleta. Porém, o que mais amava era estar na chamada Linha Alegre, na companhia da sua família. “Lidando com a bicharada e dirigindo os tratores do Vô Neuro, seu companheiro inseparável. Luís Miguel tinha uma paixão pela vida do interior. A felicidade dele era nítida por estar fazendo o que gostava no lugar que amava ficar”, lembra a mãe.

Recusa das famílias ainda é o maior desafio

Conforme a enfermeira-responsável do CIHDOTT, o principal motivo da recusa da família é a não compreensão do diagnóstico de Morte Encefálica. “Não é fácil assimilar que alguém que você ama ainda possua batimentos cardíacos, respiração e, por vezes, até mantenha a temperatura corpórea, e mesmo assim esteja morto. Contudo, é importante lembrar que há um rigoroso protocolo a ser seguido para esse diagnóstico, comprovado inclusive por exames de imagem”, explica Ana.

Outro fator atribuído à recusa da doação é o desconhecimento sobre a vontade do paciente. “Por isso é muito importante que as pessoas que desejam fazer esse bem ao próximo em caso de alguma fatalidade, deixem isso muito claro aos seus familiares”, revela.

Fotos: Arquivo Pessoal / Reprodução