A rotina é necessária para que possamos atingir nossos objetivos e manter uma vida saudável, em vários sentidos. Porém, o que mais acontece é que acabamos tornando ela tóxica. Quando você não deixa aquela pessoa insuportável ir embora, mesmo que ela não te faça bem, pelo simples fato de não querer ficar sozinho. Quando você se pune da forma que lhe convém. Alguns usam substâncias ilícitas (ou não tão ilícitas), outros não se olham direito no espelho. Outros engolem suas emoções em forma de pão de ló e lasanha. Outros tomam remédios para dormir, porque dormindo as feridas param de doer, não é?
Essa quarentena está sendo como um tratamento de choque. Ou vai ou racha. Tiramos o lençol do fantamas (lembrei de uma laive), e pudemos enxergar o quão desfigurado ele é. Está difícil conviver com isso.
Alguns vão ficar extremamente doentes, outros vão curar-se. Espero que o segundo número seja maior. Ficar cara a cara com quem a gente é de verdade não é nada fácil. Aliás, a maioria nem sabia que isso era possível. O que fazer com tanta informação que a gente simplesmente varria para debaixo do tapete? O tapete tá alto, a sujeira está transbordando.
Quando tudo começou, apesar do medo, da doença, da morte, havia esperança. Esperança de mudança, do amor, da compaixão, do autoconhecimento. Fez efeito por uns 15 dias. Fizemos doações, cursos gratuitos, exercícios em casa. Até chutar e espalhar os 5kg de arroz porque é chato pra cacete. Até sair gritando aos quatro cantos que o delivery não iria nos salvar e que só teríamos chances se pudéssemos nos aglomerar em filas para compar futilidades e ovos trufados de Páscoa.
Negócios foram quebrados ao meio. Almas foram esmagadas. Corações estão aflitos, abarrotados de Rivotril, sem saber o que esperar do futuro.
Vamos todos nos infectar? De corona ou com o próprio veneno? É realmente necessário aglomerar-se sem necessidade? Os fantasmas estão saindo debaixo da cama, sem o lençol, e as pessoas estão pulando as cercas, tentando fugir para longe, mesmo sem ter para onde ir.
O sono não vem, a energia está acumulada. São 19h e nem terminar aquela série a gente quer. Beber e assistir o show dos artistas em suas casas enormes com piscinas iluminadas…chega. A bebida nem faz mais efeito e me perdi na quantidade de toneladas de alimentos doados, belo reprise de ‘panem et circenses’.
O fantasma está ali, esperando você continuar dependente da sua droga. Ele senta e espera você deleitar-se quando sua cabeça diz “chega de tentar”, mesmo que nem tenha tentado, e corre pegar os apetrechos para injetar sua dose de “endorfina”. Ele cruza as pernas, acende o charuto com paciência, dá uma bicada macia no whiskey envelhecido e abre um sorriso malicioso. Você é um dependente psicológico.
Enquanto você junta tudo o que tiver na geladeira para ficar feliz, toma todos aqueles remédios para não sentir, prende a respiração durante o dia e libera enquanto fuma o cigarro à noite…enquanto seguir essa rotina tóxica, as feridas nunca vão sarar. Pare de arrancar as casquinhas. O lençol já foi tirado e o vento levou. Ficar com medo e aceitar, são as únicas opções. O que você pode fazer a respeito?