Já narrei, neste espaço, a saga dos nossos imigrantes, com toda uma avalanche de emoções. Visualizei sua pseudoliberdade de escolher outro continente para morar, imaginei a dor da despedida, a longa e penosa travessia, a morte em alto mar, a decepção na chegada, a força e superação, a fé aliada ao trabalho duro e a edificação do progresso. Mas, por pior que tenha sido, nada se compara àquela que deixou chagas…

Atualmente, com a moda do politicamente correto, que está calando a espontaneidade e gerando tantos problemas, tive momentos de “Afff… Que droga! Se a gente escorrega numa palavrinha interpretada como racista, está oficializada a guerra”. Mas, então, parei para refletir. E, revendo a história do negro, com feridas nem tão cicatrizadas (pouco mais de cem anos da abolição da escravatura é um tempo muito pequeno para se esquecer de violências tão grandes), vivenciei a dimensão do aniquilamento físico, moral e espiritual a que os africanos foram submetidos. E o não reconhecimento da sua contribuição na construção do Brasil em todos os aspectos. Para reavivar a memória e compreender o presente, incursiono hoje a uma viagem pelo passado…

Fins do século dezenove. Nono milésimo transatlântico aporta em Angola. Será o último, mas nem por isso, menos dramático. As famílias, em sobressalto, se escondem, mas nada passa despercebido aos olhares cobiçosos dos mercadores de gente.

A jovenzinha é arrancada dos pais, marcada a ferro quente e embarcada no porão de um navio negreiro, junto a centenas de outros angolanos, na maioria, do sexo masculino. Durante a viagem até o Rio de Janeiro, ela se agarra ao amuleto Abayomi, feito de pano por alguma mãe aflita que o deixou cair no chão infecto. A comida é escassa, a água, não potável, as condições sanitárias, desumanas. Numa das vistorias, um tripulante deita o olhar ávido sobre a nudez da garota, que é estuprada, ato esse que vai se repetir dezenas de vezes em terra firme. Do porto, a jovenzinha segue até uma fazenda de café. Lá acaba sendo mãe, não dos filhos de sangue, mas dos filhos dos patrões. Sugada até a última gota, é alforriada pela Lei dos Sexagenários. Sem eira nem beira, fica ao deus dará… Os bastardos? A Lei Áurea logo os libertará e, assim como ela, eles serão abandonados à própria sorte…

Essa personagem ficcional representa milhares de mulheres negras que foram tatuadas no corpo e na alma, gerando uma descendência que ainda anseia por uma sociedade livre, fraterna e igualitária.