Assim como ocorreu com os italianos, que fugindo da crise e da miséria se aventuraram a cruzar o Atlântico, no século XIX, Bento Gonçalves se edificou e se edifica como um sonho de melhores condições de vida para povos de diferentes continentes. Do pioneiro italiano ao haitiano que chegou à cidade na última década, após o terremoto que atingiu o país em 2010, a relação dos imigrantes com a Capital do Vinho se vinca em duas constantes: a necessidade e a esperança. Do segundo ponto, surge a força de superar as adversidades, que vão da solidão à língua; do primeiro, surge o “espírito empreendedor”, adotado quase como identidade não oficial da cidade.

Para traçar as semelhanças e diferenças entre os mais distintos perfis de aventureiros, que ademais de se arriscarem a encarar o novo há milhares de quilômetros da terra natal, transpondo todas as adversidades, ainda conseguiram iniciar seu negócio próprio, a reportagem do Semanário conversou com alguns dos empreendedores de Bento Gonçalves que, em terra de gringos, carregam sobrenomes não italianos.

De turista chinês à varejista

Em julho de 2019, Zhao Hongyu, 41, pisava pela primeira vez na Capital do Vinho com o intuito de conhecer as famosas vinícolas da cidade. Em setembro, ele desembarcaria pela segunda vez, agora, acompanhado da família, a esposa, Zhao Xeu Yeu, 41, e as três filhas, Cintia, 16, Serena, 14, e a caçula, Lana, 6, para morar no município. Dias depois, abriria sua loja de utilidades na rua Saldanha Marinho, no Centro.

Embora a mudança soe brusca, para quem conhece a história de Zhao Hongyu, ou Lion, codinome que criou para facilitar a pronúncia aos brasileiros, ela não é de se estranhar. O ímpeto aventureiro e a coragem para encarar novas realidades já o acompanhavam desde 1995, quando com 17 anos, chegou ao Brasil pela primeira vez.

Convidado por uma tia que morava em Campinas para aproveitar as férias escolares no país, Lion acabou ficando em São Paulo muito além dos três meses previstos. “Era 1995. A China ainda era um país muito fechado. Então, na hora, me encantei com a liberdade do povo aqui, o calor humano e a recepção. Disse que era aqui, que eu ficaria”, lembra.

Apesar da convicção, ele voltaria para Guangdong, província costeira a mais de 2.800 km de Pequim. As rápidas mudanças tecnológicas e econômicas vivenciadas pelo país em sua ausência, no entanto, fizeram com que se sentisse estranho em sua terra. A volta ao Brasil, seria em definitivo. Em terras brasileiras, o acaso tratou de guiar seu destino. Em um restaurante chinês de São Paulo viu um rosto conhecido de uma conterrânea. Embora nunca tivesse falado com ela antes, esse encontro ocasional se tornaria um casamento. De lá para cá, vieram as três filhas, e a abertura de sua loja em São Caetano do Sul, no ABC paulista.

Mesmo que a cidade tenha ganho recentemente o título de melhor município para se investir no país, de acordo com pesquisa da empresa de consultoria Urban Systems, a estabilidade do município não conseguiu competir com as belezas de Bento e o sentimento de Lion por sua futura cidade. “São Caetano era muito bom, mas aqui era muito bonito e tranquilo. Na cidade grande vivíamos com pressão, na televisão só passava violência. Quando estive aqui, sabia que ia ser um bom lugar para criar minhas filhas, e viemos na coragem”, conta.

Embora assustado com o calor, uma vez que esperava que no sul fizesse frio, e com o custo de vida de uma cidade turística, Lion não esconde a felicidade da nova vida. A loja apresenta um aumento de 25% nas vendas, e as duas filhas mais novas vão entrar em uma escola da cidade neste semestre, enquanto a mais velha, que finaliza o ensino médio, deve se juntar à família depois.

Diferente de São Paulo, onde a comunidade chinesa era maior, lamenta apenas uma coisa: a dificuldade em manter suas raízes gastronômicas. “É um lugar de cultura diferente. Faltam nossos ingredientes e temperos. É algo que faz falta em nosso dia a dia”, admite. Porém, mesmo com saudades da China e de suas receitas, não pensa em voltar. “Não consigo retornar em definitivo. Minhas filhas, que são nascidas e crescidas aqui,  iam sofrer o mesmo que sofri para se adaptar, com idioma, com a comida, enfim”, pondera.

O sonho de um jovem haitiano

Em dois de junho de 2014, Joel Guerrille, 28, de mangas curtas e tremendo, caminhava de braços colados ao corpo para reter o calor. Vindo da comuna de Saint Louis du Sud, onde a temperatura raramente baixa de 24 ºC, era seu primeiro dia na cidade e seu primeiro contato com o frio serrano. A temperatura, de acordo com uma placa luminosa, indicava 0 ºC.

Vindo do Haiti com um amigo, em busca de um emprego e melhores condições de vida, depois de mais de cinco anos, esse segue sendo, conforme relata, o maior entre os choques para ele. O frio, no entanto, não foi um problema duradouro. “Foi fácil acostumar, pois quando tu chegas aqui e não tem outra opção, tu é obrigado a se adaptar o mais rápido possível”, diz.

Principal barreira de adaptação para a maioria dos imigrantes, de acordo, com a pesquisa “Migrantes, Apátridas e Refugiados”, realizada em 2017 pelo Ipea em parceria com o Ministério da Justiça, o idioma, no entanto, não foi um problema para Guerrille. “Não tive dificuldades com a língua. Com minha força de vontade demorei uns três meses para conseguir me defender em português. Graças a Deus, a gente tinha uma educação de qualidade e eu já falava outras três línguas, o que facilitou aprender essa”, conta.

Da mesma forma, embora tenha chegado no ano em que se desencadearia uma crise econômica no país, ele não tardou em encontrar emprego. Em um mês, trabalhava como servente de pedreiro. Mas foi em 2018, com o ingresso no curso de Logística do Instituto Federal do Rio Grande do Sul (IFRS), que resolveu dar os primeiros passos para realizar um de seus sonhos de adolescência: abrir seu próprio negócio. Foi assim, que há cerca de sete meses começou sua loja online de vestuário e acessórios. “Desde que cheguei aqui, percebi que os haitianos tinham dificuldade para encontrar as marcas que eles costumavam usar no Haiti. Aí planejei como resolver esse problema. Como já tinha alguma bagagem do curso para entender como funciona o mundo dos negócios, eu me lancei”, destaca.

Apesar do planejamento, no entanto, uma má surpresa atrapalharia os projetos de Guerrille. Com previsão de desprender US$3 mil em sua primeira compra de importados, descobriu que as taxas quase triplicariam o valor dos produtos. “Levei muito prejuízo com isso. Praticamente, não tive lucro, mas igual aceitei pagar a taxa, pois é melhor perder um pouco, mas fazer o marketing da empresa. Assim, as pessoas vão saber que temos o produto e a loja faz seu nome”, aponta.

Enquanto trabalha com uma empresa de consultoria aduaneira para encontrar formas de importar com menor taxação, passou a investir em fornecedores de São Paulo. Apesar da primeira dificuldade, o jovem conta que não perdeu o controle. O sonho de abrir a loja física, segundo seus planejamentos, deve ser concluído neste ano.

Entre empanadas e histórias

O ano era 1977. Em uma pequena casa de madeira, o televisor sempre ligado fazia companhia para a solitária Maria Margarita Dias Fernandez, então uma jovem de apenas 21 anos, que se sentava na cama, um dos escassos móveis do espaço, enquanto se esforçava para entender o que soava nos alto-falantes. As primeiras palavras e também suas primeiras experiências de imersão na cultura brasileira se deram dessa forma, com os atores das telenovelas brasileiras e o furor dos programas esportivos em torno do Internacional, na década mais gloriosa da equipe.

Em uma época que a Serra Gaúcha ainda não contava com enólogos locais, o ex-marido de Margarita, Mario Geisse, ficou sabendo por meio de um professor da faculdade sobre uma oportunidade no Brasil. Representante de uma vinícola recém-aberta, o professor o convidou e incentivou a assumir uma vaga em Garibaldi. Com casamento feito às pressas, ainda em Santiago, no Chile, o casal rumou ao Brasil.

Embora a televisão lhe fizesse companhia, Margarita, sempre rodeada de amigos e parentes, não tardou a se arrepender da decisão. “Eu não sabia para onde ir, nem o que fazer. Que horror, que horror! Isso ficou gravado, pois me deu uma tristeza. Estava em um lugar desconhecido e sozinha. Não tinha como falar com minha mãe e nem com ninguém. Nada, nada. Era complicado”, lembra.

Além das dificuldades com o novo idioma, cultura e com a solidão, destaca que na época se assustava com os preconceitos dos vizinhos. Cenas de machismo e, sobretudo, intolerância racial eram comuns. Conta que sua primeira e melhor amiga na cidade foi a governanta, Cilá de Lurdes Cabral, a qual a família seguiria mantendo contato e ajudando financeiramente, mesmo após a aposentadoria. “Quando fazia cinco meses que estava aqui, lembro que convidei um casal para jantar na minha casa. Eles me perguntaram como eu podia ter uma ‘preta’ como empregada. No começo não entendi o que queriam dizer, depois chorei de raiva. Eu a amava, ela viveu toda vida comigo e ajudou a cuidar dos meus filhos. A gente mal conversava, pois ela não me entendia, mas ela ficava comigo sempre”, lembra.

Depois de um ano desejosa de voltar ao lar, porém, próprio de seu espirito otimista, Margarita foi se adaptando. Ainda em dezembro, viria o primeiro filho, Daniel. Quatro anos depois, o segundo, Ignácio, e outros quatro anos após, o caçula, Rodrigo. Com 12 anos de empresa, o marido que já havia comprado algumas terras em Pinto Bandeira, pediu demissão e resolveu abrir a própria vinícola, e a família prosperou.

Mais tarde, com a ida do marido para Santiago, onde abriu outra empresa, Margarita se separou. Enquanto os filhos se dedicavam à empresa familiar, ela passou, quase sem querer,­­ a germinar a semente de seu próprio empreendimento. Conforme conta, desde sempre foi aficionada por três atividades: cozinhar, malhar e se maquiar. E foi fazendo o que mais gostava, que encontrou seu caminho pessoal.

Forma de se conectar com seus laços culturais, as empanadas e receitas chilenas viraram negócio. O sucesso e o sabor de seus pratos se espalhou, inicialmente, entre as companheiras do salão de beleza e da academia. Mais tarde, o forno que mantinha no porão de casa por sete anos, deu lugar à empresa que gerencia com uma de suas noras. Atualmente, em seis pessoas, as receitas e invenções gastronômicas de Margarita estão presentes em vinícolas, bares, e supermercados de Bento Gonçalves, Caxias do Sul e Porto Alegre.

Após 42 anos na cidade, quando se lembra de sua história e dificuldades, Margarita, no entanto, diz não se arrepender de nada. Cada situação, mesmo as tomadas com o frescor e a imprudência de uma jovem de 20 e poucos anos, são venerados e a coragem e o otimismo só se fortaleceram com o passar das décadas. “Os caminhos que percorremos sempre são fantásticos. Como diz a canção de Serrat — famoso cantor espanhol —­­, não há caminhos, os fazemos ao andar. Não tenho medo de nada e gosto de enfrentar coisas. A vida é aprender e temos que encarar o percurso. Se estou mal hoje, sei que amanhã o dia será perfeito. Foi assim na vida, é assim na empresa”, explana.­­­­­