Uma década depois do terremoto que devastou grande parte do Haiti, promovendo uma grande onda migratória, o primeiro haitiano a chegar a Bento Gonçalves relata a situação do país caribenho e as dificuldades da comunidade haitiana para se integrar na Serra Gaúcha

Ao despertar no dia 12 de janeiro de 2010, nenhum haitiano poderia imaginar que aquela terça-feira se tornaria na página mais desoladora da história do país. Às 16h53, um terremoto de magnitude 7,3 na escala Ritcher, com epicentro na península de Tiburon, a 25 km da capital, estremeceria Porto Príncipe e as cidades vizinhas de Gressier, Leogane e Jacmel. Ao fim de 35 segundos de horror, conforme se desvanecia a poeira que havia tomado o céu, se despontava, pouco a pouco, o resultado devastador do sismo. Como em um cenário de guerra, centenas de milhares de casas e prédios públicos, incluindo escolas, 60% do sistema de saúde, o Palácio Presidencial e a catedral de Notre-Dame de Porto Príncipe, haviam se convertido em pilhas de ferro, madeira e concreto.

Mais que ceifar 316 mil vidas, deixar 1,5 milhão de feridos e outros 1,5 milhão de desabrigados, a tragédia agravaria ainda mais as dificuldades econômicas e sociais daquele que já era considerado o mais pobre dos países latino-americanos. A complicada situação política, a miséria e a falta de expectativas promoveriam, dessa forma, um grande êxodo, e o Brasil, que até então contava com apenas 36 imigrantes haitianos segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), se consolidaria como um dos principais destinos de onda migratória. Em 2019, de acordo com dados da Policia Federal, a população haitiana registrada em todo território brasileiro ultrapassava 70 mil.

Dadas as dificuldades de entrada em países de emigração tradicionais como Estados Unidos, Canadá e França, entre outros, o Brasil, por estar no comando da Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (MINUSTAH), se apresentou como referência para o povo haitiano. Além disso, a boa situação econômica brasileira na época também foi um fator predominante, conforme destaca a coordenadora do Núcleo de Estudos Migratórios da Universidade de Caxias do Sul, Vania Herédia. “Pelos estudos realizados com o auxílio do Centro de Atendimento ao Migrante (CAM), observamos que muitos queriam ir aos Estados Unidos ou Europa. Porém, seja pelo alto custo ou pelas restrições, era preciso encontrar um local com trabalho para se preparar para essas viagens”, destaca.

Mesmo localizada no estado brasileiro mais distante do Haiti, a Serra Gaúcha se tornou a primeira concentração regional de haitianos no Brasil, depois dos estados do Acre, por onde imigram ao país a maioria dos haitianos, e São Paulo, a maior potência econômica da América Latina. Em 2014, pelo menos dois mil já viviam entre Bento Gonçalves e Caxias do Sul, municípios gaúchos que concentram as maiores taxas de migrantes caribenhos.

De acordo com Vania, a oferta de empregos, sobretudo, na indústria foi o principal atrativo não só para a chegada dos haitianos, mas também para senegaleses, e ganeses, entre outros. A pesquisadora destaca, porém, que a migração haitiana, fruto de uma catástrofe ambiental e de um país colapsado, se difere das demais. Segundo ela, enquanto a maioria dos migrantes costuma mudar temporariamente de país para acumular capital e destinar dinheiro às famílias, o povo haitiano, por necessidade, migra sem previsão de voltar. O fato, segundo explica, reflete na grande presença de crianças e mulheres.

Hoje, uma década após a chegada dos primeiros imigrantes haitianos à Serra Gaúcha, a pesquisadora destaca a situação complicada desse povo. Se por um lado o Haiti segue mergulhado em uma crise política e social, impossibilitando as esperanças de retorno; do outro lado, a discriminação, velada ou não, ainda impede com que muitos imigrantes tenham uma vida digna em terras gaúchas.

O Haiti ontem e hoje

Nascido na comuna de Saint Louis du Sud, Adma Gama Soliman, 34 anos, passou grande parte da sua juventude em Porto Príncipe, onde conclui o ensino médio e sua formação profissional como encanador, antes de rumar ao país vizinho, República Dominicana. Apesar de ter vivido tanto tempo na capital haitiana, ao retornar para lá alguns anos depois, ele não era capaz de divisar as ruas, prédios, e bairros por onde tantas vezes passou. Em estado de choque, ao pisar no Haiti três meses depois do terremoto que devastou o país, tudo que via era escombro. A cidade da qual tinha partido em nada parecia com aquela que encontrou ao retornar.

Em Bento Gonçalves desde 2012, o encanador Adma Gama Soliman esteve no Haiti duas vezes após o sismo

Apesar de estar vivendo na República Dominicana na época, como qualquer outro haitiano, Adma não esquece o que fazia e onde estava no momento em que seu país de origem foi atingido pela maior catástrofe ambiental de sua história. “Encontrava-me na igreja quando tudo aconteceu. O pastor interrompeu o sermão e disse que havia recebido uma ligação comunicando uma tragédia no Haiti. Aí ele nos convidou a orar pelo país. Na hora, porém, a gente não sabia que era algo tão grave”, lembra.

Com grande parte das redes elétricas e sistemas de comunicação comprometidos pelo sismo, Adma não conseguia manter contato com nenhum dos familiares ou amigos que viviam no país vizinho. Por isso, foi só em abril, quando retornou ao Haiti, que pode dimensionar com os próprios olhos a devastação que havia visto retratada na imprensa dominicana e, finalmente, descobrir a situação de seus conhecidos e entes queridos. “Primeiro soube que uma sobrinha quebrou a perna e bem depois fui saber que uma prima havia falecido. Além disso, muitos conhecidos, amigos e colegas de classe se foram. Tinha um menino que estava no último ano do ensino médio e morreu na escola. Havia uns quatro mil alunos no colégio dele e todo mundo morreu. Meu sentimento era de tristeza, ficava pensando como algo assim podia acontecer”, conta emocionado.

Apesar disso, segundo Adma, sua tragédia pessoal poderia ser ainda maior. A pequena casa de sua tia adotiva, local em que ficaria hospedado por cerca de um ano na tentativa de conseguir compilar os documentos necessários para morar na França, onde vivem sua mãe e irmãos, foi à única construção de todo quarteirão a se manter intacta. Ladeada à esquerda e à direita por prédios de cerca de oito andares, não foi atingida por nenhum dos dois edifícios, os quais vieram ao chão, vitimando todos seus moradores.

Após viver por um ano em Porto Príncipe, e diante das dificuldades de conseguir os documentos que precisava, Adma voltou à República Dominicana, de onde, após guardar recursos, foi em direção a Guiana Francesa para arriscar uma nova estratégia de ida para a França, com o intuito de viver junto à mãe e os irmãos. Um encontro ao acaso, em hotel em Rio Branco, no Acre, cidade em que se faz conexão para a Guiana Francesa, fez tudo mudar. “Tinha uma empresa de móveis de Bento Gonçalves que estava lá buscando haitianos para trabalhar. No saguão, uma representante começou a falar comigo e me ofertou uma vaga”, conta.

Uma vez estabelecido na Capital do Vinho, Adma seguiu acompanhando as notícias de seu país. Em 2014, visitou Porto Príncipe pela última vez com o intuito de se encontrar com a mãe, os irmãos e demais parentes, na casa da sua tia. Após quatro anos, o cenário, conforme lembra, não era muito diferente. “Tinham reconstruído alguma coisa, mas quase nada. Ergueram um novo cartório e o mercado público, por exemplo, mas muita gente segue sem moradia. Sei também que ainda tem muito escombro que nunca foi removido”, pontua.

Grande parte dos US$ 11 bilhões capitaneados por um fundo dos ex-presidentes estadunidenses George W. Bush e Bill Clinton, além de valores arrecadados por campanhas paralelas como a da Cruz Vermelha Americana, acabaram desaparecendo e grande parte dos planos de reconstrução das cidades atingidas ficou apenas no papel. “Esses valores poderiam reconstruir um novo Haiti, pois é um país pequeno. Infelizmente, não fizeram quase nada. Até hoje, o palácio presidencial, a catedral, e muitos colégios e hospitais seguem destruídos. A corrupção acabou com as esperanças”, lamenta.

As observações de Adma são comprovadas também por levantamentos como o da Anistia Internacional, que cinco anos após o terremoto, afirmava que mais de 85 mil famílias permaneciam sem teto, e 25 mil estavam em situação precária. Atualmente, com 70% da população na miséria, com renda menor que US$ 2,4 por dia, o país encontra-se em recessão e em um momento político conturbado. Além de greves puxadas por motivos como a falta de combustível, disparada da inflação e intensificação da pobreza, o Haiti encontra-se sem parlamento.

Quase uma década na Serra Gaúcha

Embora em cidades maiores como Caxias do Sul, os primeiros haitianos tenham chegado ainda em 2010 com a iminência do terremoto, em Bento Gonçalves, o processo se daria mais lentamente. Primeiro haitiano na cidade a conseguir a cidadania brasileira e título de eleitor, Adma também foi, segundo conta, o pioneiro a chegar ao município, em janeiro de 2012.

Segundo ele, a empresa de móveis para qual trabalhou e, na sequência, uma construtora foram as pioneiras a ofertar vagas para os novos imigrantes, o que incentivou a chegada dos haitianos à Capital do Vinho. Apesar dessa abertura inicial e, de mais tarde, ter encontrado trabalho em sua área por intermédio de um amigo bento-gonçalvense, destaca que boa parte de seus conterrâneos não teve a mesma sorte.

De acordo com dados do CAM, que também atende haitianos de Bento Gonçalves e cidades vizinhas a Caxias do Sul, em 2016, mais de 43% dos imigrantes estavam desempregados. Além disso, de acordo com as pesquisas realizadas junto ao Centro pelo Núcleo de Estudos Migratórios da Universidade de Caxias do Sul, uma das maiores dificuldades enfrentadas é a dificuldade de habilitar os diplomas do Haiti no Brasil. Realidades apontadas também no discurso de Adma. “Tem empresas que abrem vagas, mas quando encaminhamos currículos de amigos, eles só ignoram por discriminação. Além disso, também vemos desqualificação. Algo que me incomoda muito é ver gente graduada, com três, quatro idiomas, que só conseguem vaga em frigorífico. Conheço enfermeiros, professores universitários, agrônomos e contadores que trabalham com frango. Isso me deixa maluco”, diz.


Outro problema recorrente, assinala, é a dificuldade de encontrar moradias. “Eu não passei por isso, porque tenho amigos fiadores, mas quase ninguém consegue um. Conheço muita gente que comparte casa com cinco, dez pessoas, pois não conseguem alugar”, destaca. De acordo com ele, para além dos fiadores e do pedido de caução, a discriminação também prejudica a procura por teto. Relata, por exemplo, que o síndico, seu amigo, chegou a lhe contar que uma vizinha havia ligado reclamando de o terem aceitado no prédio. Outro fato que lembra, foi um anúncio de aluguel com restrições para “pets e haitianos”.


Se por vezes o preconceito é velado, em outras, a discriminação é mais direta. Município que ganhou repercussão nacional em 2014 com o caso Mario Chagas, Bento Gonçalves registra em média três denúncias de injúria racial por semana, de acordo com dados da 2ª Delegacia de Polícia. Além de relatos escutados de amigos, uma situação vivenciada por Adma, mostram que muitas das vítimas desse tipo de crime são imigrantes. “Ainda não nos sentimos adaptados. Nunca pensei que ia presenciar tanto preconceito. Cheguei a ser agredido com uma marretada no trabalho, por um mestre de obras, só por ser negro”, conta.


Apesar das dificuldades e de todo drama vivido na última década, Adma carrega em si a perseverança marcante dos imigrantes que, apesar das adversidades, seguem esperançosos de um futuro melhor. Além de ser um encanador bastante conhecido na cidade, há dois anos se casou com uma brasileira e, em abril, viajará para a República Dominicana com o sonho de trazer para Bento Gonçalves, o filho que deixou no país caribenho.