O vírus no Conceição

Anos atrás, um amigo e compadre (faleceu ano passado), baixou no Conceição, em Porto alegre, ele havia tido um AVC isquêmico. Fui visitá-lo tendo deixado, dentro do carro no estacionamento, familiares à espera. Entrei no Hospital Federal, um pandemônio, era gente para tudo que é lado, sem informações, pelas longas filas que se formavam, fui indo de andar em andar, de sala em sala, enfiando a cabeça em tudo que é lugar e ultrapassando obstáculos de toda ordem, gente “hospedada” no corredor, enfermeiras em deslocamento contínuo, médicos, visitantes. Já estava desistindo quando lá no fim de um corredor, num mini quarto, num canto, estava ele. No local, um birô para os profissionais médicos, numa cama um rapaz de, no máximo, 26 anos, com Alzheimer e ele, meu amigo com AVC, num cantinho. Sentei ao lado dele, estava bem, elogiou a equipe médica, lembro dele ter dito “são uns heróis”. Eu estava meio sem graça, estava ainda impactado pelo que visualizara no Hospital em termos de indecência.

A enfermeira que se deu mal

Eu sempre estou preparado para o que a vida me reserva, aquele momento, de repentina paz, foi quebrado. O rapaz se agitava com movimentos bruscos e violentos com as mãos. Em determinado momento veio uma enfermeira, elegante em seu trajar característico, uma menina jovem e linda, com a sopinha do rapaz a “tiracolo”, cor amarela, devia ser de legumes. Prato na mão, colher na outra, ela tomou posição e veio em direção ao rapaz. Eu balbuciei “não vai dar, vai voar tudo”. Ela veio e, ele, tal qual o nosso boxeador da Olimpíada, deu um JAB de direita e o prato voou, bateu no teto e, a tal de sopa, como diria um político, se espraiou pelo ambiente, o birô e o chão, meu Deus, vocês precisavam ver o efeito “prato de sopa amarela”. Seria cômico se não fosse trágico. Embora meus cabelos estivessem da cor daqueles do GABIGOL (Argh….’) e do GALHARDO (Argh de novo!) fui acudí-la e o rapaz boxeador “to nem aí, to nem aí”, continuava boxeando o ar. A enfermeira correu para buscar ajuda, veio a faxineira, a exclamação da dita foi “meu Deus!”, saiu correndo e voltou com “mil panos”. Ajudei no que pude. Perguntei à “bela ragazza”, “ele nunca fica calmo?” Ela disse “de vez em quando!”. Então eu disse, “tu tem então que vir com a sopa quando ele está calmo”. “Mas a hora é essa, tenho que cumprir o regulamento”, ela retrucou. “Tudo bem, eu disse, da próxima vez eu venho de guarda-chuva, proteção contra a chuva de sopa”. Ela riu, eu aproveitei a deixa e perguntei: “mas como, o que tem a ver Alzheimer com AVC?” E ela, com aquela calma – não tivesse calma não poderia ser enfermeira ou assistente de cozinha – respondeu “superlotação, se coloca onde dá!”. Mais impacto na minha mente.

A sopa

De repente, o rapaz ficou quieto e começou a olhar para a porta do quarto. Eu pensei “é a hora da sopa, ele resolveu que é agora, cadê a sopa?”. E, de repente, não mais do que de repente, lá veio a “ragazza” de novo com a sopinha. E o rapaz, quietinho e docemente, a sorveu com gestos de “quero mais”. E eu aproveitei a deixa, me despedi do meu amigo no momento em que estava tudo em paz no ambiente. Preocupado em tirar do meu cabelo a “pasta de cenoura”, perguntei “onde é o banheiro, por favor?” E ela, com a colher cheia de sopa no meio do caminho da boca do rapaz, para meu pavor, respondeu: “o senhor volta por onde veio, caminha quatro corredores, é a esquerda”.

O protesto

Caminha pra cá, caminha pra lá, desvia pacientes, enfermeiras, atendentes, visitas, desisti de procurar o tal do banheiro. Adentrei (gostaram do adentrei?) no big elevador, estavam lá, em deslocamento, três enfermeiras com o “papo salário”. “Se até amanhã não vier aumento, entro com um atestado médico e não venho trabalhar”. Num pensamento solidário refleti “meu Deus, quem vai servir a sopa do rapaz?”.

A saída

Quando cheguei no térreo, era tanta gente, tanta gente, que parecia o pátio do Beira-Rio ou da Arena em dias de Grenal. Sem chances de informação, tentei sair por um lado, não dava, pelo outro, o guarda disse “é por lá”, “força de dai” consegui sair. Cheguei no estacionamento com uma hora de atraso, minha meia hora mais uma, tava todo mundo dormindo. Eu entrei, fiquei petrificado, acordaram e perguntaram: “o que foi?”, “nada, eu respondi, preciso de um tempo”. “Isto não está certo”, pensei, liguei o carro e fui embora. Com o que vi até hoje estou impactado, lembro hospital, lembro o Conceição, todo ele SUS. Uma semana depois veio a Porto Alegre o Ministro da Saúde para visitar o Conceição, em seu estado de greve e de calamidade. Ele encaminhou algumas soluções compatíveis ao problema.

O ataque do vírus

A COVID atacou pesado no Conceição semana passada, a mim não surpreendeu, 89 pacientes infectados, cinco mortos. O que podem fazer as pessoas humildes, sem recursos, senão apostar no SUS, considerado o melhor sistema de saúde do mundo? Gestão Hospitalar é coisa muito séria e complexa, “se para o bicho come, se corre o bicho pega”. No entanto, a humanização do atendimento dos pacientes por parte dos Hospitais, através de seus profissionais de enfermagem e corpo médico, está muito distante do elogiável, como um todo.

A morte do capitão Rodrigo

Érico Veríssimo, do TEMPO E O VENTO, imortalizou a figura do Capitão Rodrigo Cambará, e também a figura mística, competente, carismática do ator Tarcísio Meira, falecido esta semana. Houve tempos em que a apresentação de artistas, cantores e de teatro, assim como grandes Orquestras, “campeavam” em Bento. O Cine Aliança era um palco iluminado. Eu assisti peças teatrais com Tarcísio Meira e Gloria Menezes, assim como Procópio e Bibi Ferreira, com o cinema cheio (800 pessoas). Assim como eu assisti a última apresentação de artistas nacionais no Cine Popular, considerado “pulgueiro”, na linguagem moderna “cinema do baixo clero”. Era o cantor Vicente Celestino que, eu, guri da colônia BARRACÃO CITY, gostava muito especialmente da música top do repertório dele “ÉBRIO”, que equivaleria hoje, em termos populares, à BOATE AZUL. “Tornei-me um ébrio, na bebida busco esquecer, aquela ingrata que eu amava e que me abandonou, apedrejado pelas ruas vivo a sofrer, não tenho lar e nem amigos, tudo terminou”. E lá estava eu no Cine Popular, que era dos Padres, ouvindo o sucesso de Vicente Celestino, ao vivo e a cores. Na plateia, nada mais do que duzentas pessoas, 199 mais eu. Mas, voltando ao Cine Aliança, incentivado pelo sucesso dos artistas nacionais, grupo de Bento montou uma peça teatral escrita por Antonio Bessil, fantástico colunista e escritor, e dirigida por Vanius Michelin, me parece ter sido assim. Na peça, havia também uma escolinha tipo a escolinha do Professor Raimundo do Chico Anísio e a Praça é Nossa do Nóbrega. Os artistas simulavam trejeitos e personificavam figuras da sociedade local, a mais cômica era a interpretação, na escolinha, do comerciante Willy Koff. Foram dois fins de semana de apresentações, duas sessões cada domingo, filas imensas, cinema lotado. Inesquecível. Ideia não vingou, houve desentendimentos ou pontos de vista divergentes. Ficamos então com os filmes estrelados por Gina Lolobrigida, Sofia Loren, Ava Gardner, Tirone Power, Claudia Cardinale, Marcelo Mastroiani e por aí vai.

Eu não tava morto

Eu estava em São Paulo como convidado de honra da primeira turma de Enólogos da Escola de Enologia, eu frequentava a segunda turma. Visitávamos todas as vinícolas da Capital, de São Roque e de Jundiaí. Waldir Camerini, cuja família tinha a revenda Willys em Bento, falou “vou voltar a Bento amanhã e vou levar uma camionete zero, preciso retirar da fábrica hoje”. “Ei Valdir, me leva junto”. Diante do sim perguntei “que horas saímos?” E ele “às 4 da manhã”. Vamos nessa, fiz as contas e cheguei à conclusão de que ainda pegaria a sessão das 20 horas do Cine Aliança. Waldir corria, 100-120 por hora, na entrada de Lages, perto do meio dia, a camionete pegou fogo, ele ficou olhando, eu apavorado, tirei a blusa, abri o capô, comecei a apagar o fogo que era grande, moradores das redondezas traziam baldes de água, conseguimos apagar, “não tinha mais o que queimar”, a fiação se fora. Ele conseguiu uma oficina que trocou a fiação enquanto nós fomos almoçar, comi o melhor risoto de camarão da minha vida que, colocado na boca, “ficava defumado pela fumaça do incêndio”. Lembro que, às 14:30 horas, o conserto ficou pronto e partimos rumo a Bento onde chegamos às 20:15, fui direto para o cinema, deixei a mala na bilheteria e fui à procura de minha namorada. Como encontrá-la? Conspirou contra mim o fato de o filme ser “noir” e o cinema estar cheio. Então sentei lá atrás num assento qualquer. Saiu todo mundo do cinema e eu fiquei lá, dormindo, “bombeiro” também tem direito a descanso. De repente, sinto alguém batendo nas minhas pernas, acordei, olhei pros lados, era a faxineira, que havia limpado o cinema, ela batia com a vassoura nas minhas pernas, pensando que eu estava morto, não via sentido de eu estar ali, naquela hora, meia noite e meia. Levantei, peguei minha mala, que ainda estava lá, e fui em direção ao bairro Humaitá onde morava, tudo escuro, eu tremia “que nem vara curta”. “Covarde, pensei, vai em frente!”. O drama ainda não havia terminado, uma hora da manhã bati na porta de casa, quem disse que minha mãe abria a porta? Nem o “quem vem lá?” eu ouvia dela. Ela não sabia de minha antecipação do retorno. Diante do meu silêncio resignado e sentado na escada pronto “para ver o amanhecer”, ela estranhou o silêncio, espiou e viu que era eu, fui salvo, dormi três dias, ninguém ficou sabendo da história, muito menos minha namorada. Vejam a que lembranças a morte do Tarcísio Meira me levou.