A vida é feita de marcas e grande parte dessas marcas carregamos conosco pela vida, são cicatrizes; as piores são as invisíveis, cujas causas queremos esquecer, mais que isso, superar no divã do psiquiatra. As melhores, são aquelas visíveis e que não nos levam ao divã, indolores que são, totalmente fechadas não somente pelo tempo, mas pelo cuidado de quem nos ama, reabertas unicamente pela saudade, as quais misturam inocência, aventura, travessura, fruto das descobertas vivenciadas na saudável infância.

Aliás, em tempos de proteção total e vivências não meramente, mas ‘concorridamente’ eletrônicas, as cicatrizes sobre cicatrizes, em especial nos joelhos, são as digitais que contam a história de toda uma geração analógica.

As ruas de chão batido ou de cascalho fino, mais do que testemunhas oculares, foram cúmplices daqueles raspões de deixar a pele em carne viva e nada de culpar o anjo da guarda, imagina o que de pior suas asas nos protegeram.

Soma-se a isso os hematomas nas pernas, braços, caneladas e àqueles ‘galos’ na cabeça nas cores de nubladas nuvens em tempo de chuva. Aliás, tomar banho de chuva e pisar nas poças d´água, encharcando aquele tênis furado ou sentido a terra subindo entremeio aos dedos era a nossa Disney; vivíamos a série Star Wars lançando pequenas bolas de barro e não raro nosso “inimigo” se rendia com um choro ao acertar em cheio as costas naquela camiseta agora não mais tão branca total, radiante…

O relógio mais pontual que existia era a voz grave da mãe chamando nosso nome para o banho antes da escola e ainda no final do dia, momentos antes do pôr do sol.

Os temas de casa, sim, naquele tempo existiam, eram preenchidos naqueles cadernos tão populares de fina capa xadrez, cuja entrega da correção pela professora era tomada pela ansiedade, pois uma estrela cintilante poderia vir grudada em uma de suas folhas, mérito de capricho e letra bonita.

Ah, quase ia esquecendo: o que dizer daquele carrinho de picolé adentrando a esquina nas tardes de domingo, ao som daquela inconfundível buzina, carregando consigo os seis sabores da felicidade: chocolate, morango, nata, uva, limão e o famoso skimó… doce saudosismo!

A TV a cabo… era o cabo de metro e meio na tomada e antena adornada com um lindo chapéu de Bombril, tentando remediar os chuviscos e meia imagem na tela, cujos “inúmeros” canais disponíveis desde que fosse G… ou S… encantava as crianças com desenhos animados onde o vilão era tratado sem mimimi e punha ainda a família reunida aos domingos à noite para gargalhadas coletivas a cada nova piada dos Trapalhões, repetidas à exaustão por crianças, jovens e adultos – hoje algo impensável… velhos tempos.

Velhos tempos… novos tempos… o que realmente importa é deixar a criança ser criança no seu tempo, pois a criança cresce e com o passar dos anos poderá perder a terna majestade, pois já cantava Roberto Ribeiro neste samba épico: “Todo menino é um Rei, eu também já fui Rei […] porém menino sonha demais, menino sonha com coisas que a gente cresce e não vê jamais”.

Procurando não perder o passo, embora o risco de aprovação do aborto pelo STF poderá nos desiquilibrar como sociedade, eis que uma chaga se abrirá sem vida para cicatrizá-la; ao encerrar, me valho do samba alegre de Gonzaguinha, que infelizmente hoje soa mais como um abafado e surdo chorinho: “eu fico com a pureza da resposta das crianças, é a vida, é bonita e é bonita. Viver! E não ter a vergonha de ser feliz, cantar e cantar a beleza de ser um eterno aprendiz”.

Feliz dia das Crianças!