Com quase um milhão de matrimônios, segundo dados do IBGE, pouco mais de 11 mil são de casais do mesmo sexo. Em Bento Gonçalves, o número ainda é bastante baixo, se comparado com estados do sudeste

A taxa total de casamentos subiu 4% no país, de 932.502 para 970.041, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), no censo feito em 2022. Contudo, o valor ainda está abaixo da média anual registrada há cinco anos, que era de cerca de um milhão entre 2015 e 2019. De acordo com o Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), pouco mais de 1% (11 mil) foram de casamentos entre pessoas do mesmo sexo. Os divórcios subiram 7,9%, somando 420 mil casos. Desses, 81,1% ocorreram na Justiça e 18,9% foram assinados sem recorrer aos tribunais. Pais compartilham guarda dos filhos menores em só 37,8% dos casos de divórcio. Em mais da metade dos casos, a responsabilidade ficou com as mulheres (50,3%). O homem assumiu a guarda do menor em apenas 3,3% dos divórcios com filhos menores.

Casamentos homoafetivos

O Brasil registrou 59.620 casamentos entre pessoas do mesmo sexo entre 2013 e 2021, conforme dados são do Observatório Nacional dos Direitos Humanos (ObservaDH). Este tipo de união homoafetiva bateu recorde e registrou um crescimento de quase 20%, segundo os novos números da pesquisa Estatísticas do Registro Civil 2022, divulgadas no mês de março pelo IBGE.

O número é 19,8% maior que em 2021 (9,2 mil) e representa o recorde da série, desde 2013, quando o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) impediu que cartórios se recusassem celebrar casamento entre pessoas do mesmo sexo. Desses 11 mil, a maioria (60,2%) foi entre cônjuges femininos. Isso indica o aumento de 148,7% em nove anos, com 3,7 mil registros em 2013 e 9.202, em 2021. O maior aumento anual ocorreu entre 2017 e 2018 (61,7%). Os 59.620 casamentos entre pessoas do mesmo sexo, nesse período, correspondem a 0,6% do total de casamentos no país. A porcentagem passou de 0,4% em 2013 para 1% em 2021.

Entre as regiões brasileiras, a maior proporção de casamentos entre pessoas do mesmo sexo foi no Sudeste (0,8%) e a menor, na Região Norte (0,3%). Já entre os estados, os maiores percentuais de casamentos homoafetivos foram registrados em Santa Catarina (1,1% do total de casamentos) e São Paulo (1%). Já as menores proporções foram do Acre, Maranhão, Rondônia e Tocantins (0,2% em cada). No que se refere aos municípios brasileiros, em 2021, 738 municípios brasileiros registraram casamentos entre homens e 1.004, casamentos entre mulheres.

Em maio de 2011, o plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), de forma unânime, equiparou as relações entre pessoas do mesmo sexo às uniões estáveis entre homens e mulheres, reconhecendo, assim, a união homoafetiva como um núcleo familiar. A partir deste entendimento da Suprema Corte, que garante que os casais homoafetivos têm os mesmos direitos e deveres que a legislação brasileira já estabelece para os casais heterossexuais, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) publicou, em 2013, a Resolução 175, que proíbe que tabeliães e juízes se recusem a registrar a união de pessoas do mesmo sexo e determina que todos os cartórios do país realizem casamentos homoafetivos. Porém, em outubro de 2023, a Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família da Câmara dos Deputados aprovou o projeto de lei que proíbe o casamento entre pessoas do mesmo sexo, com o parecer do relator, deputado Pastor Eurico (PL-PE).

Diversas organizações da sociedade civil e representantes da comunidade LGBTQIA+ (lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, queer, intersexuais, assexuais e demais orientações sexuais e identidades de gênero) protestam contra o projeto por considerá-lo inconstitucional por violar o princípio da igualdade. O artigo 5º da Constituição Federal de 1988 define que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”.

Para Maria Berenice Dias, vice-presidente do IBDFAM, o aumento dos casamentos homoafetivos está de acordo com o crescimento da população e também com uma maior aceitação dos relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo. “Ao contrário do que muita gente pode pensar, desde o início, quando foi admitido, isso em nada abalou a família ou suas estruturas. Temos que reconhecer que a sociedade é plural, existem várias formas e modalidades de convívio, e isso não abala ou compromete a estrutura do Estado, que tem como base fundante a família. Todas as famílias devem ser reconhecidas”, afirma.

No Brasil, o casamento gay foi resultado do movimento crescente em defesa dos direitos de homossexuais. Com o fim do regime militar e a promulgação de uma nova Constituição, em 1988, os direitos civis dos cidadãos brasileiros estavam garantidos por lei – e qualquer discriminação com base na sexualidade contrariava tais direitos. Foi preciso, no entanto, que o movimento LGBT+ avançasse em visibilidade e reconhecimento. Um dos marcos nessa gradual conquista de reconhecimento social foi a realização da primeira Parada Gay, em 1997, na cidade de São Paulo. A festa contou com cerca de 2 mil pessoas e, com o passar dos anos, passou a reunir centenas de milhares e deu destaque à luta por igualdade para casais do mesmo sexo.

A relação homoafetiva, antes considerada apenas um regime de sociedade no Código Civil, hoje possui uma interpretação maior, considerando o casal como uma união estável, com direitos equivalentes aos de um casal heterossexual.

A união estável, prevista na Constituição Federal no artigo 226, e no Código Civil no artigo 1723, considera casais homoafetivos como entidade familiar, sendo também regida pelo direito de família. A nova interpretação garante, portanto, aos casais homossexuais todos os direitos inerentes aos casais heterossexuais, considerando a união dentro dos padrões regidos pelo Código Civil.
Ou seja, ela pode ser considerada dessa forma sem prazo mínimo de convivência, devendo apenas ser uma convivência pública, duradoura e contínua, com características de lealdade e com a intenção de constituir família.

“Foi uma decisão tomada em conjunto”

A advogada Heloisa Helena Cidrin Gama Alves, de 57 anos e sua companheira Kelly Santiago Ortiz, de 47 anos, que é jornalista, se conheceram em 2009, através de amigos em comum. “De início, não tivemos interesse uma na outra, éramos apenas amigas. Em 2015, quando Kelly voltou de uma temporada na Europa, nos reencontramos e foi aí que algo despertou. Temos uma diferença de idade de 10 anos, mas isso nunca nos atrapalhou. Nossa relação é baseada em respeito e cumplicidade”, comenta Heloisa.
Em abril de 2016 as duas começaram a namorar e no ano seguinte decidiram morar juntas. “Temos muitas coisas em comum, afinidades e amor. Resolvemos oficializar nossa relação através da união estável no auge da pandemia, em 2020. Foi algo muito natural e nos mostrou que vale a pena estarmos juntas”, relembra. Em 2027, o casal completa 10 anos de relacionamento e pretende fazer uma grande festa para sacramentar o amor e converter a união estável em casamento.

Por ser advogada, Heloisa já prestou inúmeras assessorias jurídicas a casais homoafetivos, e por isso ela e sua esposa procuraram um cartório em São Paulo, conhecido por ter um excelente acolhimento com casais gays e lésbicos, não apenas por questões legais, já que nenhum cartório pode se negar a oficializar uniões homoafetivas, mas sim por acreditarem no fundamento das relações de pessoas do mesmo sexo.
A cerimônia de união de Heloisa e Kelly ocorreu no auge da pandemia, em junho de 2020. Por isso, apenas as duas compareceram, com máscaras e todos os cuidados necessários na época. “O momento não permitia outro tipo de comemoração, precisávamos nos resguardar. Mas tivemos muitos gestos de carinho da família e amigos. Uma amiga nossa chegou até a enviar um bolo para nossa casa. Foi uma cerimônia inusitada, eu diria”, revela.

Heloisa acredita que Bento Gonçalves, por ser uma cidade de interior, ainda apresenta um certo preconceito e discriminação. “Acho que os casais gays e lésbicos ficam com receio de ir ao cartório, com medo do próprio tabelionato impor obstáculos. Também penso que existe bastante conservadorismo na região, o que pode inibir a decisão desses casais. Mas é importante informar que o processo de união estável é feito em qualquer cartório do território brasileiro. Agora, se for o casamento civil, precisa ser na cidade em que o casal vive. Por isso, acho que muitos preferem a união estável mesmo”, sustenta.
O casal não tem filhos e nem pretende tê-los, pois comentam que iniciaram a relação em uma fase já amadurecida da vida, onde não veem razão para tal. “Foi uma decisão tranquila, tomada em conjunto. No máximo, queremos ser mães de pet”, manifesta.

Heloisa e Kelly contam que nunca sentiram preconceito velado ou explícito, mas também não escondem que são um casal. “Andamos de mãos dadas, usamos alianças. Existem situações engraçadas, como quando vamos em lojas de roupas, por exemplo, e as vendedoras nos perguntam se somos amigas ou irmãs, e contamos que somos um casal. No geral, as pessoas reagem bem. Penso que é algo que deve ser naturalizado; duas mulheres podem sim viver juntas e ter projetos em comum”, expõe.

A advogada ainda comenta que considera que as reações da sociedade poderiam ser diferentes, se as circunstâncias fossem outras. “Temos que lembrar que somos um casal lésbico de duas mulheres brancas e de classe média. Acho que se não fosse por isso, ou se não tivéssemos o estereótipo da feminilidade padrão, o preconceito seria mais explícito. Temos plena consciência disso”, frisa.

Para finalizar, Heloisa destaca que a sociedade tem aceitado de uma forma melhor os casais homoafetivos. “A grande dificuldade está em algumas religiões, há muita resistência, mas acho que evoluímos e avançamos. Não podemos deixar de apontar o retrocesso no legislativo, um projeto claramente institucional, que espero que seja definitivamente enterrado. Quem deveria proteger nossos direitos, deu uma maneira de retirar nossos direitos”, conclui.

As duas primeiras décadas do século 21 foram marcadas por vitórias dos homossexuais em grande parte do mundo, mas a discriminação segue existindo de várias formas, na maioria dos países. Portanto, a comunidade precisará continuar lutando por seus direitos.