Existem assuntos que ninguém quer falar. Situações de vida que poucos estão dispostos a discutir, por incomodar demais, sejam por ser tabu ou por que é cruel em demasia. No entanto, eles fazem parte da realidade, de uma forma triste e secreta. É o caso do abuso sexual contra crianças, que em Bento Gonçalves já registra 17 suspeitas nos primeiros três meses do ano. O número é alarmante e se seguir assim, até o final do ano serão mais de 68 registros, o que resultaria em 24 casos a mais do que o ano de 2016.

O trabalho é longo e exige atenção e orientação dos pais para que os filhos saibam o que fazer, caso passem por uma situação potencial de abuso.

Para evitar estatísticas como estas que há medidas que podem ajudar a evitar que mais crianças passem por situações traumáticas, como a de um abuso sexual. Muitas destas ações estão diretamente ligadas ao Dia Nacional de Combate ao Abuso, comemorado no dia 18 de maio. É durante o mês que o Conselho, juntamente com Policiais Civis e Ministério Público praticam atividades e fazem palestras alusivas ao tema para as comunidades em escolas e salões comunitários.

Silvana Lima, uma das conselheiras atuantes na área de abuso e exploração sexual infantil, garante que os cinco conselheiros têm trabalhado diariamente para que a população perca o medo e a vergonha de denunciar. “Desde que iniciamos em 2016 com estas medidas notamos que os números aumentaram e entendemos que esse aumento está diretamente relacionado às denúncias e não somente ao abuso. Afinal, sabíamos de casos que não eram denunciados, mas que aconteciam. Portanto, os pais, principalmente, tem menos receito de vir até nós, conselheiros, para conversarmos”, observa, lembrando que o trabalho também é feito para que as crianças sintam-se seguras de contar a uma pessoa de confiança delas o que pode estar acontecendo, até mesmo dentro de casa.

A porta de entrada para denúncia

Já diz o lema do Conselho Tutelar: “Zelar por crianças e adolescentes que foram ameaçados ou que tiveram seus direitos violados”. E apesar de todo empenho e dedicação que os conselheiros de Bento Gonçalves estão tendo com os casos das crianças que chegamaté o local, que fica localizado Rua General Vitorino, ainda há muita coisa a ser melhorada, segundo eles.

Silvana, garante que o trabalho diário não é fácil e que poderia ser ainda mais recompensador se houvesse um local específico de atendimento para os jovens e adolescentes. “Em Caxias há a Delegacia da Infância e Juventude. Aqui, o que nos da o maior suporte é a Delegacia Especializada em Atendimento à Mulher (Deam), que não funciona 24h. Isso dificulta muito”, ressalta, lembrando que a Lei da Escuta Protegida já foi sancionada e deveria estar em atividade em Bento, também.

Paula Ricardo de Souza garante que o Conselho é a porta de entrada da denúncia, mas que sozinhos não conseguem fazer o trabalho necessário para combater a violência. “Temos o apoio da Deam e do Ministério Público (MP), mas é essencial que o Poder Público Municipal crie um espaço como o Revivi (que atende mulheres) para que as crianças que sofrem de violência sexual possam ser ouvidas e se sentiam acolhidas naquele local. Há muitos estudos que comprovam isso e Bento não pode mais esperar”, ressalta o conselheiro.

Dia 18 de maio, a história

Em 1973 um crime bárbaro chocou o Brasil. Com apenas oito anos, Araceli Cabrera Sanches foi sequestrada em 18 de maio de 1973. Ela foi drogada, espancada, estuprada e morta por membros de uma tradicional família capixaba. O caso foi tomando espaço na mídia. Mesmo com o trágico aparecimento de seu corpo, desfigurado por ácido, em uma movimentada rua da cidade de Vitória (ES), poucos foram capazes de denunciar o acontecido.

Os acusados, Paulo Helal e Dante de Brito Michelini, eram conhecidos na cidade pelas festas que promoviam em seus apartamentos e em um lugar, na praia de Canto, chamado Jardim dos Anjos. Também era conhecida a atração que nutriam por drogar e violentar meninas durante as festas. Paulo e Dantinho, como eram mais conhecidos, lideravam um grupo de viciados que costumava percorrer os colégios da cidade em busca de novas vítimas.

A capital do estado era uma cidade marcada pela impunidade e pela corrupção. Ao contrário do que se esperava, a família da menina silenciou diante do crime. Sua mãe foi acusada de fornecer a droga para pessoas influentes da região, inclusive para os próprios assassinos.

Lei da escuta protegida

O presidente Michel Temer sancionou na terça-feira, 4 de abril, o Projeto de Lei (PL) 3.792/15 que cria um sistema de garantias para crianças e adolescentes que sejam testemunhas ou vítimas de violência.

O texto do PL, de autoria da deputada Maria do Rosário (PT-RS) e mais 10 parlamentares, aprovado na Câmara em 21 de fevereiro deste ano cria o depoimento especial que assegura à criança e ao adolescente vítimaa de violência o direito de ser ouvido em local apropriado e acolhedor, com infraestrutura e espaços físicos que garantam sua privacidade.

Esses jovens também não terão contato, nem mesmo visual, com o acusado. As vítimas passam a ser acompanhados por profissionais especializados em saúde, assistência social e segurança pública. Será criado um serviço de atendimento para denúncias de abuso e de exploração sexual.

“A violência está em nossa sociedade e é algo estrutural”

Abusar. Palavra que no dicionário significa: “Agir de forma a servir apenas os próprios interesses, mesmo se prejudicando outra pessoa”. Historicamente o fenômeno da violência ou abuso não está diretamente relacionado à atualidade. Segundo Guilherme Howes, sociólogo e professor de Teoria Social da Universidade Federal do Pampa, mesmo antes da chega dos europeus, a violência era central nas relações entre os diferentes grupos que compunham as sociedades tribais (as matrizes nativas indígenas). Entretanto, ele salienta que “em nosso projeto de nação, na construção do imaginário social de um estado independente era importante erigir o mito de um ‘país abençoado por deus e bonito por natureza’, o que garanto ser uma utopia, pois somos o inverso, sendo um ‘país esquecido por Deus e violento por natureza'”, observa o professor.

Para Howes, a violência faz parte do “DNA social” e da construção indenitária do ser humano e, segundo ele, é por meio da linguagem que a população busca atenuar os crimes. “Chamamos verdadeiros crimes de trânsito de ‘acidente’, guerras civis de ‘revoltas’ ou de ‘levantes’, exploração cruel de trabalho assalariado de ‘colaboração’. Praticamos violência não só contra crianças, mas contra todos os vulneráveis em nossa sociedade e essa realidade precisa urgentemente ser mudada”, afirma o sociólogo.

Apesar da necessidade, Howes acredita que a situação não será revertida de forma rápida ou imediata. “A violência em nossa sociedade não é algo circunstancial, mas estrutural. Sendo assim, essa é uma situação que não se resolve em anos, ou uma década; mas em um espaço temporal bem mais alargado. Daqui algumas décadas possivelmente vivamos em um tempo onde justiça social seja um valor do qual que ninguém mais duvide”, pensa o professor.

Mas para que os números de violência sexual contra as crianças comece a diminuir, o trabalho precisa ser feito em equipe. Após o Conselho Tutelar receber a denúncia, a Polícia Civil precisa entrar em ação. Maria Isabel Zerman, que responde interinamente pela Delegacia Especializada em Atendimento à Mulher (Deam) garante que independente de onde a denúncia venha, em todos os casos, é analisada a consistência das informações, com algumas diligências prévias e, após, é instaurado Inquérito Policial para que seja obtida a autoria e as provas do crime. “O trabalho policial tem como objetivo, sobretudo, identificar o autor do delito e buscar provas para seu indiciamento. São realizadas oitivas da vítima, de testemunhas, do autor (quando identificado), além de perícias psicológica e sexual. Infelizmente, o fato só chega ao nosso conhecimento quando já ocorreu”, observa a delegada.

O aumento nos dados estatísticos de abuso sexual contra crianças e adolescentes, para Howes está diretamente ligada a divulgação midiática e de ações que são praticadas por pessoas envolvidas no caso. “Com a visibilidade adquirida pelo fenômeno, aqueles que dela são vítimas passaram a se ver nessa condição. Dessa forma, embora os casos de violência possam ter diminuído ou até mesmo ganhado nova dimensão, é possível crer que sua visibilidade parece ser a maior responsável pelo aparente aumento percentual”, pressupõe o sociólogo.

Entretanto, a denúncia por parte da criança só ocorre se ela conseguir sentir-se segura para praticar tal ação. “Quando um jovem ou criança ligar para Disque 100, saberá que do outro lado da linha haverá alguém disposto e preparado a lhe ouvir e acreditar no seu relato”, acredita Howes.

Como identificar os casos

Daniela Tremarin, psicóloga, e psicanalista trabalha diretamente com jovens e garante que é possível que pais e familiares consigam identificar e indicar quando crianças foram abusadas sexualmente. “Normalmente a criança mostra-se mais deprimida, menos interessada no mundo a sua volta, mais isolada e triste. Mas sintomas como enurese (fazer xixi na cama), insônia, irritação e baixo desempenho escolar também são fortes indícios que merecem a atenção dos adultos”, comenta Daniela.

Após a identificação dos casos, é fundamental que seja feito um trabalho psicológico e, se necessário, psiquiátrico também com os jovens que foram abusados. “Se identificado o problema o trabalho psicológico deve ocorrer paralelamente com a criança e com a família que com certeza estará abalada. Os pais ajudarão muito na recuperação se também estiverem elaborado melhor o acontecido”, observa.