Jane Krüger

A história do primeiro assassinato ocorrido na humanidade é conhecido por muitos. A segunda geração do homem já envolve tragédia. O primeiro casal, Adão e Eva, após deixarem o paraíso, passaram a cultivar a terra para obterem seu sustento e eles têm filhos: um casal de meninos. Imagine que lindo não deve ter sido. Lhes deram o nome de Caim e Abel. Cresceram juntos, quanto não devem ter brincado, brigado…quantas lembranças! Ainda não havia uma maneira de arquivá-las, o insta e o face não estavam lá…”sorte deles”? Provavelmente viviam intensamente e arquivavam tudo no seu “HD pessoal”. Como toda criança, os meninos cresceram e chegou o icônico dia: O dia de sacrificar, adorar, e agora, o que vou oferecer?

Caim, havia se tornado agricultor e deste modo, levou ao altar do sacrifício, frutos da terra. Aliás, o que restaram deles…é, e como já podemos suspeitar, era certo o que ia acontecer, ele não obteve uma boa resposta dos céus e ao invés de se auto avaliar, refletir, ver onde errou, deixou o ressentimento e a fúria tomar conta de sua alma. Abel, tornara-se pastor de ovelhas. Com coração grato, constrangido e reconhecido, oferece como sacrifício a sua ovelhinha predileta, ah, ela era perfeita. Contudo, valia entregar o seu melhor, o que seria ele sem a bondade do Eterno e suas contínuas bênçãos? Como podemos bem imaginar, logo, Abel tem a alegria de constatar, o seu coração entregue alcança os céus e a sua oferenda é aceita. Caim, ao longe, ao ver o ocorrido, transtorna-se de maneira irreconciliável.
Num dia, como outro qualquer, encontra seu irmão no campo e tomado pela lembrança de suas frustrações, mais uma vez, deixa-se tomar pelos sentimentos negativos impetuosos e permite suas emoções ofuscarem sua razão, ficando cego de raiva. O seu irmão é a prova viva de seu próprio fracasso, e ele está ali, no campo, sozinho, indefeso. Caim, definitivamente não sabe e nem tenta lidar com a crise espiritual, moral, ética e psíquica que lhe sobrevêm, e com uma pedra, uma única e certeira pedra, mata seu irmão. O primeiro assassinato da história humana tragicamente se consolida. Só existiam quatro pessoas em toda face da terra, mas “eu” não sou capaz de buscar alternativas, sair, viver longe ou então, ao menos tentar conversar, refletir. Não, eu tenho que matar!

Você já parou em algum momento para imaginar a dor desses pais? Ao descobrirem que um dos seus filhos queridos já não está mais lá? Eles nunca tinham se deparado com a morte, ninguém nem sabia na prática como isso se daria com eles. Deve ter sido terrível. O primeiro humano a morrer, morre assassinado pelo seu único irmão. Penso que talvez isso queira nos dizer algo.

D’us, não fica nem um pouco satisfeito com a história e vai literalmente e pessoalmente conversar com Caim. Contudo, esse derradeiro momento, acontece de uma maneira muito interessante. Não tem julgamento, não tem acusação, D’us nem mata Caim, pelo contrário, o diálogo começa assim:Caim, onde está o teu irmão? – pergunta D’us, como quem não quer nada.
Embora, o Eterno venha tão de mansinho, de maneira impiedosa, Caim responde:

Por acaso, sou eu agora o guarda do meu irmão?

Para alguns, talvez, este seja só um mito longínquo que não tem nada a ver com nosso tempo, contudo, Levinas, o filósofo francês, aborda essa história e mostra que, o homem, continuamente, volta a repetir o mesmo comportamento, embora envolvendo outras situações e usando outras palavras. E Levinas, para nossa infelicidade, estava coberto de razão. Hoje, estamos a viver, na história humana atual, um surto da Síndrome de Caim, e este se manifesta com alguns sintomas, tais como:


● Insensibilidade: “E o que eu tenho a ver com isso?”
● Arrogância.
● Egoísmo.
● Dificuldade para dominar os instintos primários com a predominância de
Tanatos (Pulsão de Morte / Agressividade)
● Grande objeção para reconhecer seus próprios erros e arrepender-se.
● Ausência de temor.
● Vê-se o outro como objeto – Visão distorcida da realidade.
● Irresponsabilidade.
● Vitimismo (“As coisas não deram muito certo pra mim e alguém tem que pagar por isso”)

Vou tentar explicar, sem muito me alongar. Em primeira instância, Caim, só matou seu irmão, porque no fundo, ele estava tão dessensibilizado do caráter sagrado da vida, que não reconheceu a santidade da vida no outro, não obstante, também fosse seu próprio irmão. Ele estava tão imerso e preocupado com sua própria satisfação e sucesso pessoal que, quando o outro, tem de alguma forma, a capacidade de ter algum tipo de êxito e alcançar os objetivos que eu mesmo não consigo, este passa a ser o culpado, pois me lembra continuamente, não o que ele mesmo é, mas o que eu não sou. Algumas vertentes da psicanálise, vão dizer que Caim, utilizou aqui, o mecanismo de defesa primário, chamado de Projeção, onde acontece aproximadamente o seguinte: Eu sei que errei, mas admitir conscientemente isso, é muito doloroso e a minha arrogância não permite eu reconhecer essa falha, desta maneira, projeto no outro, a minha própria imperfeição e culpa. Literalmente, passo a “ver” no outro, o que eu mesmo sou, sendo assim, obviamente ele tem que pagar, e se não houver alguém que faça isso acontecer, que exerça a justiça por mim, eu mesmo o farei, se preciso, com minhas próprias mãos.