Gosto de contar aqui histórias que talvez lembrem suas próprias histórias.
Quando eu ainda acreditava em Papai Noel, ganhei um presente que encheu meus dias de felicidade: uma bola de futebol de cor chumbo tão pesada quanto.
A bola era composta de um material sintético duro que desafiava a integridade de dedões acostumados a chutar tudo o que aparecesse pela frente, de traseiros dos colegas metidos a bestas, casas de formigões, ninhos de cupins a qualquer coisa esférica, oca ou não, inclusive, pequenas pedras.
Isso de a bola ser dura em nada mudou a lembrança que guardo daquele natal mágico.
Foi no campinho de terra batida perto de casa que estreei minha espetacular bola de borracha, mas jogávamos bola em tudo que era canto: no meio da rua, num terreno baldio, nos corredores da escola e nos canteiros da praça.
Bastava juntar meia dúzia de meninos e pronto. Estava decretada a partida de futebol sem hora para acabar.
A escalação dos times era na base do par ou ímpar. Os times eram sempre “os de camisa” contra os “sem camisa”. As goleiras eram definidas com pedaços de pau, pedras, tijolos, montinhos de camisas ou as tradicionais havaianas libertadas das tiras.
Gritaria dos diabos. Suor escorrendo à canecadas pelas calhas de nos nossos rostos vermelhos de tomate maduro.
A “pelada” tinha algumas regras, mas não eram de acordo como manda a FIFA. Valia puxar pelo calção, dar rasteira, empurrão e cotovelada. Só não valia sair no meio do jogo para beber água e mão na bola.
Tinha os que reclamavam o tempo todo:
– Pode parar, foi falta.
– Passou por sobre a trave (a trave era imaginária).
– Dentro da área, pênalti (não havia área demarcada).
Tinha os pernas-de-pau que apanhavam da bola. Tinha os “ensopadinhos” que não cabeceavam nem nada para não desarrumar o cabelo.
Tinha, inclusive, os craques que driblavam e “rebolavam”, humilhando os adversários e encantando a torcida composta exclusivamente por meninas que não torciam por um time ou outro, mas pelo menino, mais popular, o Bento.
E minha nova bola de borracha no centro daquela ferveção.
Maltratada, a redonda tentava escapar dos nossos “bicos”, quicando aqui, pulando ali, se escondendo no meio dos arbustos.
De vez em quando, sobrava para uma ou outra canela desprotegida. Dois ou três ais e a dor ia embora.
De repente, o goleiro Montanha deu um chutão, a bola subiu e subiu para cair do outro lado da cerca, bem no meio da horta do vizinho.
O Pança pulou a cerca para buscá-la e retornou a toda pressa. Instantes depois, apareceu um homem gordo e de barbas brancas, disfarçado de Papai Noel, com a bola fujona em uma das mãos e canivete na outra. A lâmina brilhava ao sol. Sem dó e nem piedade, o homem deu uma estocada.
A bola sangrou, barbaramente assassinada.
Ficamos todos pendurados em lágrimas.
Com o canivete ainda aberto, o homem chegou perto da cerca e disse cheio de razão, antes de retirar-se como um assassino que se evade sem pressa:
– Oh, oh, oh, isso é para que não tornem a destruir a minha horta.
Fizemos um movimento afirmativo com a cabeça e murchamos. De mais a mais, não tínhamos coragem para responder o que quer que fosse.