O conflito entre a arte e moralidade e, consequentemente, a dificuldade de aceitação do corpo e da sexualidade são temas que marcam a história do mundo das artes desde sempre e que ganham simbologia máxima no século 18, quando o papa Clemente 13 ordenou a aplicação de folhas de parreira em todo o acervo de nus do Vaticano. As ilustrações mais notórias de um novo período de combate à nudez e ao erotismo artístico, porém, são bem mais recentes, estando ainda frescas na memória: a exposição Queermuseu no ano passado, e mais recentemente a exposição do caxiense, Rafael Dambros.

Para o diretor de teatro Edson Possamai, a censura às obras expostas no Santander Cultural em 2017, e aos quadros na Câmara de Vereadores de Caxias do Sul no mês passado, são amostras de que a ideia de cobrir obras artísticas com folhas está tão viva hoje quanto há três séculos atrás. Percepção que é consenso e ganha eco também nas vozes de outros estudiosos e artistas de Bento Gonçalves e região.

Segundo o antropólogo e professor da UCS Caetano Sordi, os debates ganham força pela projeção das redes sociais e, sobretudo, pelo conflitante momento político que o brasileiro está passando. “Talvez em um contexto anterior, a exposição do Dambros passasse despercebida, mas como essa agenda de moral dos costumes se tornou um dos principais eixos de disputa política do Brasil, ela ganhou uma repercussão muito maior do que seria em outro momento.”

 

O erótico nos olhos  de quem vê

Muito além de uma onda conservadora, os debates em torno da arte e da censura, segundo os estudiosos, vem da falta de acesso e interesse a cultura, históricos na sociedade brasileira. Para Possamai, o distanciamento da arte, provocado pela falta de incentivo educacional sobre a matéria, faz com que as pessoas se prendam ao imagético imediato sem tentar compreender os significados da obra. Assinala que aquilo que é pensado pelo artista como pesquisa, questionamento ou provocação, está sendo lido como apologia.

Quanto à nudez, Caetano questiona quanto a forma como a arte é vista pode revelar algo também sobre o interprete e a cultura que ele está inserido, e não somente sobre o artista. “É de se pensar porque, automaticamente, a nossa sociedade quando vê a imagem do corpo nu tende a erotizá-lo. Quando os gregos antigos tinham aquelas estátuas seminuas era mais pela beleza no sentido transcendental do ser humano do que por uma questão sexual”, pontua.

Já para Sordi, só vamos ter uma percepção mais hospitaleira com arte e a produção estética quando nos permitirmos entender qual o ponto de vista do artista e para quem isso faz sentido. Nesse sentido, deixa seu apelo de conscientização. “É preciso que as pessoas, antes de emitir juízo sobre exposições de arte, obras literárias, teorias políticas e pedagógicas, tentem olhar a obra também sobre o viés de quem a fez, pois tudo que o ser humano cria, mesmo que não nos agrade, faz sentido para alguém”, conclui.

 

“Liberdade de ser e de amar”

Ngnoatto e sua obra Erotic (Foto: Ricardo Hegenbart, Divulgação)

A frase que intitula o manifesto da série de quadros “Erotic” de Giovani Ngnoatto, 27, é também o fio condutor de toda a sua obra e processo criativo. Natural de Bento Gonçalves, o artista viu na representação gráfica dos corpos e das relações sexuais a possibilidade de compartilhar com o mundo a sua inconformidade com uma sociedade que ainda tem dificuldade em aceitar gêneros e orientações sexuais que ampliam os padrões normativos.

Há três anos em Porto Alegre, Ngnoatto conta que, por experiência própria, a arte tende a ser melhor aceita em cidades maiores e multiculturais como a capital gaúcha, enquanto que no interior o conservadorismo funciona como agente de censura, mesmo que indiretamente. “Nunca consegui expor em Bento Gonçalves por conta da mentalidade fechada das pessoas”, protesta.

Segundo ele, a própria criação do Erotic foi uma resposta ao modo como se sentia sufocado na cidade. “Inicialmente, as minhas inspirações eram para expressar minha sexualidade. Como eu não conseguia viver como quem eu realmente era, eu aplicava essa tentativa de liberdade na arte”, assinala.

Hoje os trabalhos do artista tratam de questões como novas visões de relacionamento e aceitação de toda forma de sexualidade. “Nos meus quadros não defino gênero, não deixo claro se os personagens são homens ou mulheres, trabalho com sentimentos e conexões comuns a todas as pessoas”, explica.

Em seus traços, o artista busca traduzir o que para muitos pode ser considerado pornografia, como uma aceitação humana das diferentes formas de amar e manter relações.

 

Discussões sobre a nudez masculina

A percepção da superexploração do nu feminino em novelas, filmes, revistas, publicidade, entre outros meios midiáticos, é o que despertou no fotógrafo Symon William Mendes a ideia de trazer à tona, por meio de seu trabalho, uma visão pessoal sobre a nudez masculina e sua aceitação pela sociedade.

Foi com essa iniciativa que o fotógrafo deu vida ao “Projeto Nudus”, seu trabalho de conclusão para o curso de Fotografia da UCS. “Na Grécia Antiga o corpo do homem era exibido e entendido como obra para admiração, mas em pleno século XXI, o uso dele na arte ainda segue sem ser completamente aceito. O que quero com minha obra é provocar essa discussão, abordando estudos sobre a nudez masculina, a fotografia erótica, a pornografia, entre outros tópicos”, explica.

Sobre as reações à sua obra, conta que muita gente ainda não está preparada para encarar o assunto. “Parece que tudo que envolve as palavras nudez e sexo assusta as pessoas, mas é algo natural, todo mundo tem órgãos genitais e transa. Sei de gente que deixou de me seguir nas redes sociais por eu postar homens seminus, além de inúmeras denúncias. No começo eu me sentia muito frustrado por isso, mas hoje eu apenas ignoro a opinião alheia e faço o que tem que ser feito, as pessoas gostando ou não”, conclui.

 

Movimentos complexos de sensualidade e técnica

Última turma de professoras formadas em Sensual Hip Dance (Foto: My House, Divulgação)

Basicamente é desta forma que se resumem as coreografias da Sensual Hip Dance, modalidade de dança criada há dois anos pela professora porto-alegrense Gabriela Chultz. Segundo ela, a criação desse novo gênero se deu naturalmente e de modo a unir suas paixões por estilos diferentes. “Comecei com dança do ventre aos 7 anos, aos 12 conheci a dança urbana. Aos poucos mesclei a sensualidade da movimentação de quadril própria da dança do ventre com a explosão dos movimentos do rap, hip hop e pop”, explica. Outra técnica que serve de base é o Twerk, dança de origem norte-americana que também trabalha o quadril, mas de modo mais enérgico.

Para Gabriela, além dos benefícios à saúde próprios de uma atividade como a dança, o principal na Sensual Hip Dance, como bem diz o nome, está no sentido que se dá a sensualidade, representada não só em movimentos, mas também em forma de protesto. “Cada mulher tem o seu jeito de explorar sua beleza e de ser sensual. Tanto com os exercícios quanto nos discursos tento criar essa sensibilização e esse empoderamento, tentando minimizar o modelo fixo de sensualidade que nos vem pela mídia”, explana.

Além das turmas que ministra em seu estúdio na capital gaúcha, Gabriela, buscando a expansão da modalidade, certifica outras profissionais para darem classes de Sensual Hip Dance, de modo presencial e também online. Hoje, já existem mais de 30 professoras capacitadas em diferentes pontos do Brasil e mesmo em outros países, como Argentina, Austrália, Espanha e Estados Unidos.

Somente em Bento Gonçalves, dois estúdios de dança já oferecem classes. Um deles é o Studio de Dança Nina Aver, da professora Natália Aver, que atualmente ministra aulas para 15 jovens e mulheres da cidade.

Assim como a idealizadora da modalidade, Natália destaca que a essência dessa dança não está nos movimentos propriamente ditos, mas no que se traduz a partir deles. “O que tentamos passar as alunas é isso de se sentir bem e ter autoestima, não ser julgada e nem se sentir julgada por trabalhar sua sensualidade”, explica.

Quanto aos conflitos sociais resultantes de uma dança sensual, as professoras assinalam que há juízos distorcidos nas redes sociais, onde as coreografias e fotos são divulgadas, mas que o preconceito é diminuto, diante das mensagens de apoio enviadas pelas próprias mulheres. “Como a gente não faz coreografia na rua, não ouvimos muita coisa. No Instagram, o público que mais comenta é mulher e, como não trabalhamos com competitividade, na maioria, são elogios e incentivo. Mesmo entre os homens não há tanto preconceito, pois não lidamos com isso de forma vulgar, mas como expressão artística”, explica.

Para a professora de Bento, os juízos negativos se dão por um preconceito estrutural que faz com que as pessoas, automaticamente, erotizem tudo que é sensual. “Quando o público desavisado vê esse rebolado, que é mesmo bem exagerado, se assusta, mas quando prestam atenção e veem que é algo artístico, deixam os estereótipos de lado. Se lidamos com isso (a sensualidade) de modo natural, sem pudor ou vulgaridade, a aceitação é maior”, opina.

Para ela, as polêmicas sobre a aceitação do corpo na arte, sobretudo na Serra Gaúcha, se dá pela falta de acesso e gosto pela cultura. “Aqui não há esse costume de ir ao cinema, ou em uma galeria de arte e se discutir o que é visto. Esse contato com a cultura é imprescindível para que as pessoas tenham novas visões do mundo e entendem que mesmo aquilo que não gostamos é apreciado por gente com quem nos relacionamos no dia a dia”, finaliza.