A tragédia que causou a morte de 236 pessoas na boate Kiss, em Santa Maria, há uma semana, provocou uma mobilização em várias cidades do país para fiscalizar estabelecimentos em situação irregular. Na Serra Gaúcha e, mais especificamente, em Bento Gonçalves, não foi diferente. Por aqui, até ontem, uma força-tarefa do Corpo de Bombeiros e do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano (Ipurb) havia fiscalizado pelo menos 14 casas noturnas na cidade, entre salões, clubes, bares e boates.

O que chama a atenção é que, dos 14 locais que receberam a fiscalização, nada menos que 64,3% delas não passaram no teste de segurança. Ou seja, nove locais não têm, de acordo com a fiscalização, condições de receber grupos de pessoas.

Eles estão interditados por tempo indeterminado principalmente por não possuir os equipamentos de segurança considerados imprescindíveis para o funcionamento pelas normatizações estaduais e federais, já que a cidade não possui uma legislação própria para isso.

A bem-vinda ação dos fiscais também deve chegar a outras quase três dezenas de locais públicos, incluindo teatros e até supermercados. Neste primeiro momento, os locais não foram multados, mas devem ficar fechados até a regularização da documentação. A fiscalização deverá retornar a esses locais para verificar o cumprimento das interdições. Caso haja descumprimento, os estabelecimentos serão multados, um auto infracional será lavrado e a desobediência deverá será informada à Secretaria de Segurança Pública. Assim diz a legislação. Mas, depois dos números assustadores, quem, em sã consciência, atestaria a segurança e o atendimento às regras de prevenção a incêndios por aqui?

Mas o que está por trás disso é o que mais assusta. Se, em apenas poucos dias de fiscalização, tantas irregularidades e afrontas às normatizações técnicas foram encontradas, o que fez com que quase uma dezena de locais fosse interditada, por que essa constatação não surgiu antes? Por que apenas depois da tragédia de Santa Maria isso veio à tona? Antes, não havia fiscalização? Ou havia, mas era de certo modo condescendente com as irregularidades?

Mesmo que a iniciativa seja positiva, será preciso responder essas questões para garantir credibilidades a organismos públicos que precisam contar com o apoio e a confiança da população. São duras perguntas e necessárias as respostas que poderão ajudar a impulsionar mudanças na legislação, no comportamento dos cidadãos, nessa mania vergonhosa do brasileiro de fazer vista grossa para erros e falhas indesculpáveis, de empurrar com a barriga, de deixar passar coisas como postergar a fiscalização, como não dotar um local público de extintores apropriados ou saídas de emergência. Os bombeiros não haviam sido alertados para isso? E o Ipurb, como concedeu alvarás de funcionamento a locais flagrantemente irregulares?

Mesmo que até agora, apenas os proprietários dos estabelecimentos devam procurar as autoridades para renovar a autorização anual de funcionamento, os erros poderiam ter sido verificados anteriormente. Se não o foram, algo está muito errado. É preciso estabelecer uma meta de fiscalização, os frequentadores devem estar atentos, mas, acima de tudo, as autoridades precisam exercer sua função sem desvios de espécie alguma. Os absurdos revelados pela fiscalização de agora mostram que uma opinião técnica abalizada pode salvar vidas, e que, até agora, escapamos de tragédias por força do acaso.