Embora não seja a primeira vez, assim que ultrapasso a classe executiva e afivelo o cinto no meu assento, na classe econômica, sou assaltada pelo arrependimento. Por que tirar os pés da terra firme? Qual o problema em viver sonhos rasos no próprio quadradinho, observando as nuanças do mundo de longe?

Tentam me convencer de que, no alto, os riscos são mínimos, o trânsito não é caótico, não chegam balas perdidas, não acontecem assaltos, coisa e tal. E que a sensação de liberdade é indescritível. Sei não… Entrar numa gaiola para voar é uma tremenda contradição.

Lá vem a comissária de bordo com as instruções de praxe. “Blá-blá-blá, Blá-blá-blá, em caso de despressurização da cabine, máscaras de oxigênio…”. Meu pensamento sofre uma pane e só retorna com a comissária já exibindo o colete salva-vidas. Tento localizá-lo sob o assento, mas não consigo. Se esta manobra é assim difícil, em plena calmaria, imagina então na hora do caos! Mas de que adiantaria mesmo? Nunca se ouviu falar de sobreviventes resgatados do oceano após a queda de avião…

Tudo pronto para a decolagem. Turbinas a mil. Coração a milhão. Felizmente, há bebês a bordo. Deus é mais sensível com os inocentes… Ele mesmo disse “Vinde a mim as criancinhas!” Ops! Por favor, Deus, não as chame agora, tá?!

Confiro a asa direita – do meu lado – onde está escrito “Do not wolk outside this área” (quem ousaria pisar aí?). De repente, ela dá um rápido bocejo, mostrando sua dentadura metálica. O ronco do motor é hipnotizante. A aeronave levanta o nariz. É agooooooooooooora!

Estamos atravessando o mar de nuvens, que lembra uma enorme tigela de flamery coberto de claras em neve (coisas de infância). Subimos mais… As nuvens foram varridas para baixo. Um bebê dorme, outro choraminga. De resto, silêncio total. Cada um com seus medos e segredos. O compartilhamento é só do espaço.

Epa! “Estrada esburacada”… Paúra! Dizem que as turbulências estão ficando cada vez mais frequentes e severas. Só pode ser coisa do aquecimento global, o efeito estufa. E ainda têm tramposos que produzem um monte de gás metanos e não dão a mínima para as consequências.

Estamos agora voando sobre o Atlântico. Céu e mar em conjunção. O sol se pondo. A aeronave planando… Tanta quietude me causa inquietude… Será que entrou algum urubu numa das turbinas? Improvável, talvez; impossível, não. Em 1973, um tipo de abutre voou a quase 12 km de altitude, colidindo com um avião na Costa do Marfim. Estou paranoica. Melhor relaxar…

Caramba! Abaixo de nós desfila a cadeia andina (sem presos), a mesma que patrocinou a Tragédia dos Andes em 1972. Já pensou comer gente para sobreviver? Claro que sim, né, malandro! E no sentido literal da palavra?

Ufa! Chegamos sãos e salvos! A saga continua, nos próximos capítulos…