Olhar centrado enquanto as mãos, cuidadosa e habilidosamente, tecem e os pés trabalham com a sequência de pedais. Quatro, dois, três, um. Pisa no pedal quatro, passa o fio da trama e junta. Então, pisa no pedal dois, passa o fio da trama e junta. E assim por diante, muitas e muitas vezes.

É dessa forma que, centímetro a centímetro, os fios coloridos vão dando forma a cachecóis, mantas, tapetes, jogos de mesa, toalhas; peças listradas, lisas, estampadas. Cada uma das obras finalizadas nos centenários teares do ateliê de Justina Foresti, 56 anos, e sua filha Vanessa Cavalet Lauthart, 36 anos, localizado em um também centenário casarão na Linha São Pedro, interior de Bento Gonçalves, é um resgate de uma tradição quase apagada pela fabricação industrial: a arte da tecelagem manual.

Se as máquinas têxteis mais modernas produzem dezenas de peças por hora, um único cachecol liso leva pelo menos duas horas para ficar pronto nos teares manuais. Os tapetes, mais trabalhados, podem levar até três dias para cada metro quadrado. “É tanto cuidado, é como criar um filho”, brinca Justina.

O resgate da história

Embora os primeiros capítulos da história do ateliê remetam a década de 1990, época em que Justina ainda se esforçava para entender o funcionamento dos antigos teares de madeira garimpados em Santa Catarina e Minas Gerais, o contato da família com os fios vem de muito antes.

A tecelagem manual e até o filamento artesanal do linho e da lã na roda de fiar eram práticas comuns entre as famílias de imigrantes italianos, que povoaram Bento Gonçalves na virada do século XIX. Como o comércio ainda não era desenvolvido, assim como a agricultura, a tecelagem também era uma atividade de sobrevivência. “Haviam famílias que teciam, mas a maioria fazia o linho em rodas de filar e levavam o fio para essas pessoas que teciam. Não existiam lojas para comprar roupas, então as pessoas faziam suas próprias vestimentas e a dos vizinhos”, explica Justina. Uma das costureiras mais buscadas inclusive, era sua mãe, que mais tarde “obrigaria” a filha a se inscrever no curso de corte e costura.

Com o desenvolvimento da indústria e do comércio, no entanto, a necessidade de fazer as próprias roupas ficou no passado e a tradição por pouco não se desfez, ao ponto dos teares, hoje presentes no ateliê, quase deixarem de existir. “Com o desenvolvimento do comércio começaram a vir tecidos de São Paulo e ficou mais prático comprar nas lojas que criar. Assim, os teares foram abandonados e desapareceram, a gente achou um de pedal abandonado em uma fazenda de Minas Gerais”, conta.

Memórias de Justina

Embora muitas memórias afetivas de Justina estejam ligadas a tradição do tear e da costura, a lembrança das peças que criava na primeira metade da década de 1980 é, sem dúvida, uma das que guarda com mais carinho: os enxovais que costurava para as filhas Vanessa e Vivian. “Eu costurava e tricotava a maioria das roupinhas delas. Como tinham só 11 meses de diferença, eram praticamente gêmeas, então eu fazia tudo igual, só com cores diferentes”, lembra emocionada

Conforme a família e as necessidades foram aumentando, porém, Justina teve que deixar as linhas de lado e se dedicar a novos ofícios, por um longo período, até que por meados de 1991 e 1992, quando o roteiro Caminhos de Pedra começava a tomar forma, pôde retomar ao seu ofício de coração e resgatar, junto com as filhas e outras artesãs da localidade, a tradição do tear manual. “Quando começou o turismo, resolvi voltar à tecelagem. Comprei uma máquina manual de malha, e costurava em um cantinho do porão”, conta. As primeiras peças começaram então a ser vendidas aos turistas diretamente na residência e também em uma pequena loja adaptada na Ferraria Ferri, um dos dois mais antigos pontos do roteiro, onde além de malhas e blusões, eram comercializados travesseiros de penas e pluma de ganso.

Em 2008, o casarão de madeira construído pelo imigrante Ângelo Giacomin em 1915, seria então recuperado para receber o ateliê, onde Justina e Vanessa seguem costurando e resgatando a história.

Memórias de Vanessa

Para além dos relatos ouvidos do avô, que dizia que em sua infância lembrava de ver a prima e a  tia em teares manuais como os que a neta viria a usar muitos anos depois, o interesse de Vanessa pela tecelagem vem da curiosidade típica da pré-adolescência.

Aos 12 anos, mais por insistência pessoal do que por incentivo materno, já acompanhava a mãe no ateliê que a família mantinha no porão. “Eu ajudava porque gostava, não porque ela pedia. Ela nem gostava que chegasse perto para não desconcentrar”, lembra humorada. O gosto pelo ofício e pela arte foi se intensificando com o tempo, e  ao passo que ajudava a mãe e acompanhava o desenvolvimento do ateliê, em paralelo também aprendia crochê, bordado e costura com a avó.

A irmã, com menos gosto ao trabalho manual, acabou migrando para outras áreas, enquanto Vanessa permaneceu e permanece fazendo o que mais gosta: criar. Mais do que as mantas que leva posto todos os dias, o amor pelo que faz fica claro na forma em que trata os produtos, frutos de seu suor, paciência e arte. “Às vezes, tenho até pena de vender”, comenta humorada.

“Temos que pensar nas cores, nos tipos de fio, no efeito da trama, nos desenhos – se liso ou não. São tantas possibilidades, que posso ficar o dai todo só pensando. Quem gosta disso se encanta, eu gosto. Tecer é uma arte, e sempre é como um ter uma tela em branco nos esperando”