Reportagem do Semanário excursiona a Cotiporã para visitar o cerro onde viviam escravos fugitivos no século XIX

Abraçado pelo Rio das Antas e rodeado por parreirais que mesclados à mata nativa circundam seu sopé, se erguem os 513 metros de pedra balsâmica que constituem o Morro do Céu, também conhecido por Morro dos Baianos. Mais que um cartão postal símbolo da natureza de Cotiporã, esse é o cenário pouco conhecido de uma das histórias mais antigas e emblemáticas que se tem registro na Serra Gaúcha.

São 30 minutos aproximados de caminhada cerro acima, entrecortando trilhas ora abertas, ora fechadas, por entre a mata nativa para chegar ao topo, onde se abre a grandiosidade de um imenso descampado, circundado quase que 360 graus por penhascos abruptos. O lugar, que hoje serve de pastagem para o gado da família Lazzarini, já foi um solo histórico, onde, no século XXI, se instalou um dos poucos quilombos que se tem registro na região.

O somatório do difícil acesso, antigamente viável por duas trilhas, a visão estratégica para todo o vale, a existência de uma fauna rica de pequenos mamíferos e aves, além de solo propício para pequenos cultivos de milho, trigo e feijão, foi o que permitiu o desenvolvimento de uma comunidade de mais de vinte famílias de escravos foragidos no alto do cerro. Muito tempo após o dispersamento dos negros, as ruínas de seus antigos casebres feitos de madeira, pedra e capim, são a única herança de tudo que ali se desenvolveu.

Hipóteses que se contrapõem

Primeiro a perda da liberdade, depois da vida, e por fim das memórias. Está é a linha narrativa que conduz as crônicas de resistência dos negros do Morro do Céu.  Transmitidas oralmente pelos moradores mais antigos de Cotiporã e reproduzida, sobretudo, pela comunidade de Nossa Senhora dos Navegantes, que circunda o cerro, as narrativas ganham tom de lenda com falas e causos dissonantes.

Abraçado pelo Rio das Antas, o Morro do Céu, com seus 513 metros, se destaca na paisagem (Foto: Lucas Araldi)

Os relatos sobre o “quilombo dos baianos” se contradizem mesmo nas páginas que dizem respeito a sua origem, entretanto, sua existência conflituosa junto aos primeiros imigrantes italianos e poloneses que se instalaram próximo ao Rio das Antas e do cerro, confirmam que os negros chegaram a Cotiporã antes de 1875, ano que marca o início da colonização italiana na Serra Gaúcha. O ex-prefeito da cidade, Dalmo Luiz Scussel, que está finalizando um livro de resgate histórico do município, enumera duas possibilidades, sublinhando, porém, que elas não são únicas: a primeira assinala que a comunidade se formou com escravos fugitivos de uma grande fazenda agropecuária instalada na margem direita do Rio das Antas; a segunda hipótese, bastante semelhante, diz, porém, que escaparam de uma família que trabalhava com produção de erva-mate.

Scussel conta que os primeiros registros acerca da colonização de Monte Vêneto (onde hoje é Cotiporã), então distrito de Alfredo Chaves (atualmente Veranópolis) fazem referência a portugueses vindos de Lagoa Vermelha, em meados de 1850. “A família de Joaquim Perreira Fialho de Vargas foi a primeira a chegar. Eles fundaram a ‘Fazenda Fialho’, uma grande extensão de terras ao lado direito do Rio das Antas”, conta. Explica ainda, que além do charque e da criação de gado, os Fialho possuíam uma grande serraria que transportava madeira pelo Rio das Antas até Porto Alegre. Em ambas as frentes, os fazendeiros mantinham mão de obra escrava. “Como a fazenda tinha escravos, acredita-se que os negros do Morro do Céu, fossem rebeldes que fugiram dali e encontraram no cume do cerro um lugar estratégico para se esconder”, complementa.

A segunda teoria apresentada por Scussel diz respeito à outra família de portugueses que se estabeleceu na região, fundando a comunidade mais antiga da Serra Gaúcha: Santa Bárbara, na margem direita do rio Carreiro. “Eram pessoas de Santo Antônio da Patrulha que vieram colher erva-mate para exportá-la para países vizinhos como Uruguai e Argentina. Então os negros também poderiam ter fugido daí”, conta.

 

Conflitos

 À medida que as primeiras famílias italianas e polonesas, atraídas pelas colônias ofertadas pelo Império na época, povoavam os arredores do morro, os conflitos com o povo quilombola tornaram-se frequentes. Em um dos casos que se tem notícia, Antônio Baiano, um dos sete filhos do chefe quilombola, Ezequiel Gonçalves da Cruz, conhecido como o “Velho Perna de Pau”, levou um tiro de Pedro Balim, e desferiu um golpe de adaga. Scussel conta que na época, os imigrantes diziam que membros da família Cruz estavam roubando plantações e gado, mas que essa era só uma desculpa para encobrir a discriminação com que tratavam os “baianos”. Opinião compartilhada pelo guia turístico Jones Puton, que há 16 anos trabalha divulgando roteiros e histórias da região. “Eles viviam lá em cima isolados, e o pessoal preconceituoso tinha receio. Foi se criando um clima hostil”, comenta.

O gado pasta onde antes existia um cemitério no alto do morro (Foto: Lucas Araldi)

Tal qual a origem do povo quilombola do Morro do Céu, a forma com que se dispersaram também é contada de modo distinto de acordo com as histórias lembradas por cada interlocutor. Enquanto alguns relatos citam vagamente que os conflitos com os italianos e poloneses fizeram com que os negros remanescentes se dispersassem pelo rio abaixo, rumo a Guaporé, Puton escutou uma história mais violenta. O guia conta que uma versão compartilhada entre os mais velhos, diz respeito a uma chacina nos anos 1930 ou 1940. “Por causa das denúncias dos imigrantes, alguns soldados vieram de Porto Alegre e subiram o morro cavalgando, vestidos de prenda para não causarem medo aos negros”, conta. Depois disso, os sons do tiro que ecoaram no vale deixaram clara a intensidade do conflito. “Morreu muita gente. Os que sobraram desceram o morro e sumiram. É o que diz a lenda”, finaliza.

Vestígios da História

Em 1999, a reportagem do Semanário excursionou até o Morro do Céu para escutar as crônicas dos moradores além de buscar vestígios das antigas casas ou do cemitério que existia lá no topo. Após o desânimo ao não encontrar sinal das antigas cruzes e tumbas, alguém avistou uma cruz junto a um marco que delimitava o espaço do cemitério. Quase 20 anos depois, voltamos ao local, e até esse resquício havia sumido. Mata adentro, guiados por Maicon e Deoclécio Lazzarini, herdeiros das terras, escondido entre a mata e o musgo, encontramos, no entanto, uma base de pedras circular, fundação de uma das antigas casas quilombolas.  Maicon conta, inclusive, que há uns 40 anos, um grupo que acampou no morro, no meio da noite, escavou o terreno em busca de joias e ossadas.

Reportagem do Semanário feita em 1999, última vez que a reportagem havia visitado o morro (Foto: Lucas Araldi)

 

Deoclécio na fundação de uma das antigas casas do quilombo (Foto: Lucas Araldi)

 

O destino das 20 cruzes que haviam no topo do morro também são incertos. Scussel fala que uma delas, com a inscrição de Ezequiel Gonçalves, filho do Perna de Pau, foi levada pelos escoteiros de Bento Gonçalves, já Deoclécio diz que uma delas faz parte do acervo de um museu. Assim como sua origem e suas lutas, o fim das famílias negras que viviam no Morro do Céu, bem como os vestígios de sua história são pouco a pouco esquecidos, permanecem, porém, nas poucas linhas escritas sobre o caso, as narrativas de resistência de um povo guerreiro junto as nuvens que envolvem o cume do cerro.