Para muitos, os homicídios não passam de números. Assassinatos estão crescendo na região e já parece não impactar tanto. Mas o que as estatísticas não são capazes de contabilizar é a dor. A perda de alguém mexe com toda estrutura familiar. As pessoas mais próximas precisam reaprender a viver. Elas são as vítimas ocultas dos assassinatos. Um estudo feito pela cientista social Dayse Miranda, uma das autoras do livro “As vítimas ocultas da violência na cidade do Rio de Janeiro”, diz que cada morte violenta afeta, ao menos, cinco pessoas. São elas que têm que descobrir como lidar com a saudade.

Róger da Silva Cabral fez 18 anos na quinta-feira, 6 de junho. No dia seguinte, ele foi assassinado junto com outros quatro jovens, na maior chacina da Serra, que aconteceu no Bar dos Amigos, no bairro Municipal. A casa da família fica na outra rua, há poucos metros do local. De lá, Vera Lúcia da Silva, 34 anos, ouviu os tiros e sentiu um aperto no peito. Com a intuição que só uma mãe tem, ela começou gritar que seu filho estava morto. “Quando começaram os tiros, senti que meu coração começou a ficar apertado. Veio a imagem dele caído no chão com sangue, aí comecei a gritar que era ele. Ninguém me falava a verdade, mas eu sentia”, lembra.

Além do filho, ela perdeu dois sobrinhos, Robert e Mateus da Silva Ribeiro, 21 e 23 anos. Vera não ficou sabendo logo que Róger havia sido confirmado entre os mortos. A família só contou para ela no dia seguinte. “Não tem explicação. Metade da minha vida se foi junto com ele. Todo mundo diz que era a hora, era o destino, mas não acredito nisso. Não consigo aceitar. Por que ele? Um piá com tantos sonhos, para quê ele? De noite, quando me levaram no salão, fui ver ele no caixão. Eu não acreditava. Até agora parece que ele vai chegar em casa.”, diz.

Vera não consegue conter as lágrimas ao falar sobre Róger, mas precisou se reerguer, voltar a trabalhar, cuidar dos outros filhos, Amanda, 9 anos, e Lucas, 13. A menina chora bastante e está fazendo acompanhamento psicológico. A mãe e o marido também começaram a fazer estudo bíblico, para tentar entender o que aconteceu e ter mais força para continuar a vida. “Pensei que estudando a Bíblia eu ia me conformar, só que, às vezes, ainda me pergunto o porquê”, relata.

Sem conseguir dormir, Vera está passando por acompanhamento psiquiátrico e tomando remédios controlados. “Final de semana não consigo ficar em casa. Os amigos dele colocam foto dele no Facebook. Cada dia é pior. Acho que nunca vai doer menos, sempre vai doer mais. Fica o medo. Mas aí você fica com medo de tudo, imagina que pode acontecer com os outros filhos, contigo mesmo, é muito difícil continuar depois”, afirma.

Róger queria ir para o exército. O jovem também desejava se mudar do bairro Municipal. Sua vontade era viver em um sítio.  Sonho que a família pretende honrar daqui a uns anos. O padrasto de Róger, Fabiano Araldi, 42 anos, diz que agora, cada vez que eles ouvem um barulho, ficam com medo de sair de casa. O temor de ir trabalhar e algo acontecer com outra pessoa é uma constante. “A gente recém tinha chegado do serviço. Depois ele veio para casa. Pedimos se ele queria dinheiro para comprar alguma coisa. Ele disse que não, que só queria 20 reais. Pegou e saiu. Disse: tchau mãe. Falamos para voltar logo. Ele disse que ia voltar. Ele estava com o celular dela (Vera). Na hora dos tiros, começamos a ligar. O telefone só chamava. Foi a última vez que vimos ele vivo”, recorda.

Lucas sonhava em ser delegado

Lucas Raffainer Cousandier, 19 anos, saiu de casa no dia 4 de fevereiro de 2016, em um final de semana de Carnaval, para se divertir com os amigos. Ele não voltou mais para casa. Em Caxias do Sul, na Avenida Itália, com medo por terem ingerido bebida alcoólica, os jovens não obedeceram a uma ordem de parada da Brigada Militar. Durante a perseguição, os policiais atiraram diversas vezes. O jovem ficou ferido. Ao perceber que haviam atingido um inocente, eles implantaram duas armas no carro e simularam um confronto. O adolescente morreu dois dias depois no hospital.

A vida da família de Lucas nunca mais foi a mesma. A mãe, Naira Raffainer Cousandier, 55 anos, diz que não existem palavras para descrever a dor da perda de um filho. “Estou me tratando desde que aconteceu. Entrei em desespero. Não conseguia nem levantar da cama. Só sentia a dor e o sofrimento. Até hoje, é difícil passar um dia sem chorar. Aí fui procurar ajuda, para continuar a vida, porque tenho outro filho, o Murilo, de 12 anos”, conta.

Segundo Naira, o irmão de Lucas também sofreu muito. A família pensava que ele não sabia o que tinha acontecido, que ele acreditava que havia sido um acidente de trânsito. O pequeno só conseguiu falar sobre a perda no consultório de uma psicóloga, onde revelou que sabia todos detalhes. Na escola, Murilo reprovou. “Meu marido sempre tentou ser mais forte, acredito que é um pouco. Ele se esforça para me ver bem. Mas tudo mudou, o trabalho não foi mais o mesmo, a gente não tem muito ânimo. As coisas vão desandando”, relata.

Lucas estudava direito e trabalhava na empresa da família. Para Naira, a culpa do que aconteceu é do estado. “Hoje, infelizmente, não confio na polícia. É triste. Falta muita coisa para o poder público poder preparar de maneira adequada quem está na rua para nos proteger”, afirma. Ela diz que os piores dias da vida dela foram quando Lucas morreu e no dia do julgamento dos culpados. “Tive que olhar para quem tirou a vida do meu filho. Todo julgamento em si é muito doloroso. Nunca tinha entrado num Fórum para assistir um júri. Foi muito triste. Não foi feita a justiça que esperávamos, aí que machucou mais ainda”, lembra.

A força, ela afirma que vem primeiramente de Deus, mas que é preciso ter consciência que não se consegue sozinho. “Tem que fazer tratamento, terapia. E pensar nas coisas boas que ele deixou. Nos momentos felizes que passamos com ele. Foram só 19 anos, mas foram muito bem vividos. O apoio de familiares e amigos ajuda a seguir em frente. Ele queria ser delegado ou juiz. Não é normal enterrar um filho. Infelizmente, nesse mundo cruel de hoje acontece bastante”, ressalta.

“Não tem dor pior”

D.C.P, não conseguiu chegar aos 23 anos. Ela estava em casa com o marido. Do lado de fora, fazendo churrasco, estavam os irmãos e os filhos pequenos da jovem, um com 6 e outro com 3 anos. Os planos eram jantar e depois os homens iriam caçar. Mas a mãe dela, que tinha um bar há poucos metros dali, sentiu que algo ruim iria acontecer. “Deu um aperto no peito. Eu tive que ir na cozinha chorar. Quando voltei para atender, escutei o tiro.  Saí de pé no chão, correndo. Quando cheguei lá era tarde”, relata.

O marido havia assassinado a filha dela. Um disparo direto no coração. Quando a mãe, que hoje tem 49 anos, chegou na casa, encontrou o irmão mais velho de D.C.P. debruçado sobre a jovem. Eles chamaram a ambulância, mas não tinha mais o que fazer. “Eu sei que não tem dor pior. No mesmo dia, o conselho também pegou meus netos e deram a guarda para o avô. Precisei lutar quatro anos pela guarda deles”, lembra.

Ela já havia perdido outro filho meses antes, afogado. Tendo que lidar com a dor de tantas perdas, a mãe precisou da ajuda de remédios por três meses para conseguir seguir em frente. O assassinato, que hoje seria considerado feminicídio, aconteceu em Jaquirana, no interior do estado. O relacionamento do casal já dava sinais de abuso e ciúmes. “Minha mãe morava em Farroupilha, eu já tinha trazido ela para cá com os filhos. Mas o pai dela a levou de volta 15 dias antes dela ser morta”, conta a mãe da jovem. Depois do ocorrido, ela decidiu mudar de cidade.

Com o pai precisando de cuidados, ela decidiu morar com ele, em Farroupilha. A partir de então começou reconstruir sua vida junto com os outros quatro filhos. Mais tarde conseguiu a guarda dos netos. “Esse vazio, nada preenche. Não tem mais dia de festa, não comemoro mais. É uma dor assim que não tem como explicar. Muitas vezes, me tranco no quarto, choro minhas lágrimas”, confessa.

“É um medo que não se sabe de onde vem”

Moisés Pedro Mezaroba, 35 anos, foi encontrado morto na manhã do dia 3 de junho, em Garibaldi. Horas depois, o carro em que ele estava foi encontrado com sangue. Conhecido como DJ Brother, ele morava com a mãe, de 63 anos, e tinha dois filhos gêmeos, de 14 anos, que residem em outra cidade. Emocionada, Morgana Mezaroba, 39 anos, irmã dele, diz que a pior parte sobre o ocorrido é não saber realmente o que aconteceu, pois a investigação ainda não foi concluída. “É um quebra-cabeça tentar refazer os passos dele e compreender o que pode ter levado à sua morte”, ressalta.

Quem recebeu a primeira notícia foi a mãe de Moises. Ela perdeu a fala quando atendeu a ligação que anunciava a morte do filho. Mas Morgana conta que ela já sentia que algo tinha acontecido. “Naquelas horas que ele havia sumido, ela não parou de ligar para o celular dele”, diz. “Eu e ela estamos tomando remédio e fazendo terapia. Qualquer pessoa que está atrás de nós, temos insegurança. Tenho medo de estar sendo seguida. A gente sempre tem aquele medo de que alguém possa fazer algo para a família. Ainda tenho crises de pânico, muitas vezes, vou parar no hospital. Com meus filhos também estou sendo mais protetora”, declara.

A mãe de Moisés ainda não se sente confortável para falar sobre o assunto, mas Morgana diz que ela está tentando compreender o que aconteceu. “Ela não consegue ficar ainda com a porta do quarto dele aberta quando vai dormir. Se está fechada, ela pensa que ele está dormindo, está bem. Então fica mais fácil. Eu procuro passar mais tempo com ela, dar apoio, conversamos sobre as coisas boas que ele fazia”, conta.

Família precisa se reestruturar para sobreviver

A psicóloga Franciele Sassi diz que as mortes repentinas e violentas requerem um tempo maior de recuperação dos familiares, pois trazem a necessidade de construção de um novo sentido e significados em meio a emoções confusas. “As mortes violentas, se tratando do processo de luto, costumam gerar revolta e sentimentos de vingança. A raiva pode, muitas vezes, paralisar o enlutado, que fica por um tempo estendido na busca de respostas externas para explicar o evento ou encontrar culpados, e não volta o olhar para si mesmo e para como está lidando com a sua dor”, explica.

Sobre as consequências geradas pela perda de um ente querido, Franciele diz que é esperado que a família se modifique estruturalmente para poder sobreviver frente às mudanças e que cada membro reage de uma forma muito específica. “A comunicação é sempre essencial, para que um possa apoiar-se no outro e juntos construam novas possibilidades de organização familiar com o tempo, mesmo frente à dor. A psicoterapia, em casos de morte violenta e repentina, trabalha no sentido de fortalecer o indivíduo a partir da construção de significados internos e da experiência vivida”, diz.